terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Escrafunchando o lagamá de Ubatuba


Lá estão, na capa, os cambitos finos e tisnados de sol do boneco de Olinda, escrafunchando o lagamá com os pés. Não se sabe ao certo a origem do apelido, se pejorativo, porque ele já incomodou os poderosos de plantão com sua pena afiada, ou se brincalhão, em vista de sua elevada estatura física e artística. Ou ainda por causa dos bonecos enormes que ele faz. O essencial é que Julinho Mendes é um artista, é o que o define. Sua arte se expressa na construção de bonecos, sacis, nas artes plásticas, telas, poemas, marchinhas de carnaval, no fino humor, na música caiçara da boa, na prosa, nos seus contos e causos. Mas há uma arte na qual Julinho é insuperável: a arte de cultivar amigos, que requer imensas doses de paciência e boa vontade. E agora nos presenteia, sem que tenhamos como retribuir.

Pois bem, Julinho, um dos últimos dos caiçaras, nos presenteia agora com um livro, que tem prosa e dois poemas, uma coletânea de crônicas e causos, um livro que cheira muito bem. Um cheiro que emana de páginas como as que descrevem o surgimento do camarão na moranga, ou o suave odor da maresia.

Cheira bem e é colorido, quando nos ensina como ter filhos louros de olhos azuis, e emite sons maviosos como os do violino do Lindolfo, ou muito estridentes: "Preeeega foooooogo!"
Gosto do cheiro de livros velhos, que é indescritível e varia de livro para livro. Gosto do cheiro de tinta preta de jornal, gosto refinado nas madrugadas na oficina, ao cuidar cuidadosamente do fechamento da edição com a notícia de última hora. Mas gosto muito também do cheiro de livros novinhos, o cheiro característico de tinta gráfica de livros.

Ouvi, minha vida inteira, que pareço ter "fogo no rabo", e é em situações como a da publicação do cartaz de lançamento do livro do Julinho que percebo o quão isso é verdadeiro. Tive necessidade urgente de sentir o cheiro do livro recém-saído da gráfica, e a internet ajuda muito nisso.

É um livro que, como nos alerta o próprio autor, não traz novidades, porque boa parte de seu conteúdo foi publicado nas páginas de O Guaruçá ou divulgado em programa radiofônico que lamento muito, muito mesmo, lamento demais, não ter escutado. A novidade é o próprio livro, apenas o primeiro do Julinho. Haverá outros, é certo. Os causos foram encadeados de tal forma que, mesmo sendo completos em si, levam o leitor a querer conhecer o que vem a seguir. É leitura pra lá de fácil, gostosa, divertida, leve e, ao mesmo tempo, profunda. Enquanto uma porção de gente fala das belezas caiçaras e sobre preservação ambiental o Julinho vive isso, intensamente, com os pés todos os dias escrafunchando o lagamá e as mãos reverenciando as árvores e o mar, e soube colocar isso em texto.

É, de alguma forma, um livro biográfico, com os causos que descrevem a família do autor, mas também o universo caiçara de Ubatuba desde décadas atrás. Tem começo, meio e fim, e finalidade, e é também uma emocionante declaração de amor à pessoa de olhos de jabuticaba a quem o livro é dedicado. Mas quem é não conto. O leitor que descubra.

Ditadura
O livro do Julinho é também um libelo contra a destruição e desfiguração da identidade caiçara de Ubatuba, de suas matas e rios, de seu mar. Ainda que hoje não exista mais censura, o acesso de estudantes a bens culturais ainda é dificultado. Livro como o do Julinho, por seus conteúdos tendentes a criar identidade caiçara, sentimento de pertencimento ao lugar, e pelo primor do texto, deveria estar nas mãos de todos os alunos das escolas, senão de todo o Litoral Norte, ao menos das de Ubatuba. Mas a política educacional sem diálogo tanto do município como, e principalmente, da Secretaria da Educação tucana, preferiu assinatura de revistas como a Veja em vez de livros, apostilas em vez de livros. Desembocou agora, aqui no LN, em ódio em vez de crítica e autocrítica úteis, construtivas. Há os atos ditatoriais como os do governador tucano Alckmin através de seu secretário da Educação, que chegou a iscar a PM contra estudantes que ocupavam escolas, por conta de um programa feito por iluminados, sem consulta a professores, estudantes e pais.

Para que não se pense que se trata de crítica de teor partidário, lembro aos petistas que, sim, alguns dos seus, e de seus partidos parceiros, roubaram e muito, e democracia deixa muitíssimo a desejar em Ubatuba, onde o prefeito, que é do PT, sanciona um descalabro de lei que destruirá o meio ambiente na Maranduba agora e no futuro, sem ter feito audiências públicas e discutido com os interessados, a população. Surdina, da noite para o dia, urgência urgentíssima urgentésima, coisas que, por si só, revelam má-fé. E logo-logo veremos prédios onde nem saneamento básico existe, graças à especulação imobiliária desenfreada.

Gosto do cheiro de livros velhos, que é indescritível e varia de livro para livro. No porão da antiga Biblioteca Mário de Andrade, em Araraquara, variava de prateleira para prateleira. Posso afirmar que conheci Garcia Lorca pelo cheiro, era época da ditadura e ele tinha sido banido para mais um porão de ditadura, dos tantos que aquela malfadada "redentora" criou brasis afora.

É por ter vivido isso que lamento as indecentes propostas do retorno à ditadura, ouvidas aqui e ali. Que lamento a dificuldade de acesso a livros, ainda que haja iniciativas como a geladeira do calçadão. Livros deveriam estar escancarados em todos os lugares, entregues "de grátis" a todos os alunos, colocados na geladeira do calçadão - inclusive os novos, com cheiro de tinta da gráfica, o que só seria possível dentro de uma política educacional não tacanha. A que temos, infelizmente, é nanica.


- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 01/12/2015