terça-feira, 29 de abril de 2008

Padre Voador

Elevar um balão aos ares não foi a primeira façanha do Padre Voador. Seu primeiro invento foi uma bomba d'água, que levava a água do riacho Paraguaçu, em Salvador, até o Seminário de Belém, 100 metros acima. Na mesma linha, e no mesmo ano, inventou outro dispositivo, para drenar água do casco dos navios. Dispositivos funcionais, eficientes, tecnologias que foram incorporadas ao uso no dia-a-dia. Tinha 20 anos à época das invenções, o então seminarista. Só se tornaria padre no ano seguinte, integrado à Companhia de Jesus. O jesuita precisava de horizontes mais alargados e seguiu, então, para a Universidade de Coimbra, onde estudou Ciência Matemática, Ciências de Astronomia, Mecânica, Física, Química e Filologia. Seu curso de doutoramento foi na Faculdade de Cânones, da Universidade de Coimbra. Além de seus estudos de graduação e doutorado, exerceu as artes da Diplomacia e da Criptografia. Mas toda essa formação foi depois de seus principais inventos, aos quais se dedicou na época de sua formação no que seria hoje o curso colegial. Não era um aventureiro. Era um observador dos fenômenos da natureza, procurando entendê-los com rigor científico. Bem verdade que falamos da ciência da época, porque, quando fez subir aos ares seu balão, chamado por ele de Passarola, corria o ano de 1709.

Foi só na terceira tentativa que subiu aos ares a sua Passarola, um sucesso aboluto: o primeiro engenho mais-leve-que-o-ar, 74 anos antes dos irmãos Montgolfier voarem em um balão de ar quente, o que fizeram em 1783, quando a tecnologia disponível colocava o risco numa faixa aceitável. Se Santos Dumont é para nós, brasileiros, o pai da aviação -- em segredo, sem testemunho de terceiros e com ajuda de uma catapulta, os irmãos Orville e Wilbur Wright teriam voado num mais-pesado-que-o-ar três anos antes de Dumont, cujo vôo foi em público e numa máquina que elevou-se aos ares por seus próprios recursos --, não fica nenhuma dúvida na história mundial que o pai da aerostação é Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nascido em dezembro de 1685, na então Vila de Santos, em São Paulo.

Morreu novo, o padre Bartolomeu, aos 39 anos, numa cama do Hospital da Misericórdia de Toledo, na Espanha, onde havia se refugiado, para evitar a perseguição que, em Portugal, poder-lhe-ia mover a Inquisição (tinha sido denunciado a ela por heresia). Cento e oitenta anos depois de sua morte, seu corpo foi trasladado para o Brasil, em 2004, e está atualmente na cripta da Catedral da Sé, em São Paulo.

Tais considerações são a propósito de um outro "Padre Voador", que, também novo, aos 43 anos de idade, está desaparecido, ao tentar um desastrado vôo num mais-leve-que-o-ar, sem munir-se dos conhecimentos necessários à empreitada. Foi chocante ouvir sua própria voz, ao telefone, já com problemas no vôo, pedindo aos bombeiros de Guaratuba (PR) que alguém o ensinasse a operar o aparelho de GPS que havia levado.

Há risco em toda a atividade humana. Alguns são aceitáveis, e outros, definitivamente não. Dentre estes últimos, estão os riscos associados à imprudência.

2 comentários:

Juliano Machado disse...

Sabe que quando vi a notícia, no domingo ao entardecer do padre Aderli que havia se metido na trapalhada de se perder com balões de festas, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o nosso Bartolomeu de Gusmão (nome do aeroporto aqui da terrinha), personagem tupiniquim por quem sempre me afeiçoei. Depois um ou outro veículo fez lembrar o padre baiano, mas sem dar muito detalhes. Acho muito sadio que, embora num momento delicado, se faça lembrar uma figura brasileira tão importante. Além disso, ou até mais, é interessante o que seu artigo salienta quando a se fazer as coisas com um mínimo de conhecimento e sempre que possível com a idéia do rigor científico.

Elcio Machado disse...

Juliano, obrigado pelo comentário. Fiz duas correções no texto, uma das quais a referência à Inquisição. Pesquisando melhor, percebi que se trata de um tema controverso na vida do padre Gusmão, pois ele não chegou a ser processado. Foi somente denunciado, em Portugal -- o que, naqueles tempos bicudos, não era pouco -- e, paradoxalmente, foi para a Espanha, onde as fogueiras ardiam mais fortes.
Falar "mal" de um desaparecido, presumivelmente morto, é algo que se pode intentar só com muita cautela, pois está definitivamente afastada a possibilidade de justificativa ou resposta do próprio interessado. No entanto, foi da própria voz dele, gravada pelos bombeiros, que veio a declaração de desconhecimento de como funcionava o aparelho de GPS.
Mais uma coisinha só: não se sabe ao certo a causa, mas o fato é que Gusmão não fez novas tentativas de colocar seu aeróstato no ar. Talvez tenha pesado na decisão o puxão de orelhas que levou do núncio apostólico de Lisboa, que inqüinou de perigoso o invento, porque poderia vir a causar incêndios. Isso numa época em que não havia corpo de bombeiros e as próprias bombas d'água estavam em fase de invenção e aperfeiçoamento. Se efetivamente foi assim, mais um ponto a favor do padre, que então teria demonstrado ousadia, mas temperada pela cautela.
Beijo.