segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ubatuba, Guerra, a paz de Gandhi, o túnel


Recebi hoje delicada cobrança do Marcos Guerra, por estar sumido aqui da revista O Guaruçá. Estou bem, mas ainda às voltas com problema de saúde em família, o que me impede de completar o processo de mudança para Ubatuba. Estou, pois, ainda, em Assis, a 700 km da cidade onde já mora meu coração.
Costumo escrever aqui em primeira pessoa, o que, no dizer de Pedro J. Bondaczuk, é uma prática que sofre condenações e epítetos de "arrogante, imodesto, convencido e outros quetais." Mas ele próprio, que também escreve em primeira pessoa, completa: "Bobagem. Entendo que se trate de manifestação de personalidade, de autoconfiança, de certeza quanto ao que escreve." Discordo do Pedro, quanto à parte final: ainda que se trate de manifestação de personalidade, nada tem de autoconfiança, de certeza quanto ao que se escreve. Tenho certeza de muito poucas coisas, cada vez menos, com o passar dos anos. Tento cultivar, faz tempo, o ver "o outro lado", talvez herança da formação na prática jornalística. Mas isso também não é fácil, minha mulher que o diga.
Recolhe-se, de Nietsche, que "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras." Ele vai além: "Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas." É bom ter convicções, mas temperadas pela dúvida. Tudo o que é pétreo, petrificado, revela uma certa ausência de vida. Isso vale também para as convicções pétreas. Só quem está vivo tem mobilidade, não é pedra.
Digo isto porque, apesar de ausente como autor, continuo sendo leitor ávido da revista O Guaruçá. Li os textos do Marcos Guerra, nesses últimos dias. Concordo com muito do que ele diz, mas tenho dúvidas, algumas severas, quanto a outras. Por exemplo, não quero integrar os 80% inadimplentes com o Imposto Predial e Territorial Urbano, mas quero aceitar a convocação que ele fez, em IPTU e a desobediência Civil em Ubatuba. Ele convoca uma grande parcela de moradores, definitivos ou eventuais, a transferir para Ubatuba seu título de eleitor. Já fui ao cartório eleitoral (onde fui muito, mas muito bem atendido, é conveniente dizer).
Tenho sérias dúvidas quanto a essa forma de desobediência civil porque, ao longo da vida, observei que ela acaba beneficiando não os humildes, os desendinheirados, mas aqueles que têm caixa e postergam os pagamentos porque sabem que haverá, ao depois, uma anistia fiscal dos acréscimos. Então, se posso pagar depois de amanhã, pelo mesmo preço de ontem, por que pagar em dia? Por conta dos "prêmios" oferecidos? Ora, convenhamos, é um chamariz para lá de ineficaz, como prova o índice de 80%.
O cerne da questão, acho, não está em pagar ou não pagar o IPTU em dia, mas em exigentemente fiscalizar a correta (do ponto de vista do bem público) aplicação dos recursos. Vale para coisas grandes e pequenas, conforme o ponto de vista. Vale para os grandes dispêndios com a destinação final do lixo, e vale também para as despesas menores, desnecessárias e perniciosas, como a vandalização e destruição do mosaico português escherniano, como, em 2006, mencionou Ramon Ruiz Escobar, ao fazer sua pergunta Um artista holandês em Ubatuba? Aliás, por onde anda o Ramon, já que seu e-mail, citado naquela matéria, já não está mais operacional?
Parte do material que compunha o vandalizado (pela Prefeitura, sob Dudu) mosaico português está na foto do Guerra que mostra: Não há luz no fim do túnel. Não sei se concordo. Diria, talvez, ainda não há luz no fim do túnel. Algumas ações judiciais do Guerra apontam para um fim de túnel, onde, eventualmente, haverá luz. O próprio mecanismo da democracia, se tudo o mais falhar, retirará o atual "dono do pudê" ao final de uns tantos dias, que o Moura, de boa memória, sabe contar.
Abre-se, aqui, outra interessante questão. Poderíamos, cautelosa e preventivamente, exigir compromissos dos próximos candidatos, para que tivéssemos bússola minimamente segura para nos orientar nas próximas eleições municipais. Mas, afinal, que segurança resulta de compromissos publicamente assumidos, como à farta nos revelou o Guerra ao registrar o em Greenpeace em Ubatuba? Houve alguma ação para tornar Ubatuba em efetiva "Cidade Amiga da Amazônia"? Chirico Serra, por escrito, firmou que não abandonaria a Prefeitura de São Paulo para ser candidato a governador do Estado. Valeu de algo?
Não, nenhuma ingenuidade é permitida quanto a isso. É necessário ir além do que diz, afirma e firma o candidato. É necessário saber de quem se acerca, qual a história de sua vida pregressa. Mas isso ainda é pouco. O necessário, mesmo, é ter um mecanismo eficaz de controle, como o previsto no valor universal Democracia: um corpo legislativo que efetivamente fiscalize. E ter, diretamente do seio da sociedade civil, organizações não governamentais que exerçam a democracia direta, controlando, pelos meios possíveis, o que fazem os gestores municipais, sejam do Executivo, sejam do Legislativo. Sobre isso, lembrando, na sequência, Julinho Mendes, a sra. Maria Cruz, o Elias Guerra, a ONG AMARRIBO, já tenho algo escrito, mas ainda não maduro (não sou movido só a ócio, por vezes deixo textos amadurecendo, porque, de impulso, é sempre possível escrever mais bobagens do que aquelas tantas que, inevitavelmente, escreveríamos depois de alguma reflexão. Quanto mais escrevemos, mais bobagens escrevemos, tenho isso como fato).
Há, afinal, uma luz do fim do túnel, porque os eleitores (aqueles que já o são ou venham a transferir título eleitoral para cá) poderão mudar os rumos atuais (ou mantê-los, é necessário dizer). Mas, para isso, será necessário contar com veículos de comunicação de massa sólidos, duráveis no tempo, pluralistas, o que, lamento dizer, ainda não vi em Ubatuba, exceto, talvez, um pouco, aqui em O Guaruçá (o Moura sabe que qualquer dia vou falar sobre isso). Mas esse é outro dos textos sob amadurecimento.    

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá, em 24/1/2010.




quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Corredor Remendão Raposo Tavares - CRRT


Espertamente, a cobrança dos novos pedágios do Corredor Raposo Tavares -- que, aqui, chamarei de Corredor Remendão Raposo Tavares - CRRT -- começou quando do aumento de tráfego por conta das festividades de Natal-Ano Novo e das férias escolares. A cobrança foi precedida de um remendão geral nas rodovias integrantes do CRRT, feito pela concessionária CART (Concessionária Auto Raposo Tavares). De uma maneira geral, CRRT aproximadamente igual a CART.

No que consiste o remendão? As vias que compõem o sistema há muito estão com a base do piso das faixas de rolamento bastante degradadas. Afundamentos causados por veículos de carga mostram que a estabilização da base não foi bem feita, quando da construção das rodovias. "Panelas", como são chamados os buracos causados por vários fatores, mas principalmente por falhas da base e ação erosiva de águas pluviais, são frequentes em todo o sistema. Pouco adianta consertar o piso flexível das pistas, coisas do tipo "recapeamento pontual", se a base não for estabilizada. As operações tapa-buracos do DER, antes da concessão do sistema a uma empresa particular, sempre foram realizadas com periodicidade irregular, mirando os efeitos e, jamais, as causas. Efetuada a concessão, o que mudou? Nesse sentido, nada. A CART remendou o CRRT, maquiou os defeitos da pista, correu contra o tempo para colocar em operação os caça-níqueis das praças.

Nem são tão níqueis assim. Em valores da data-base de julho de 2008, valores máximos (tetos) de R$ 0,077078
(setenta e sete mil e setenta e oito milionésimos de Real) para rodovia de pista simples e de R$ 0,107910 (cento e sete mil, novecentos e dez milionésimos de Real), para rodovia de pista dupla, segundo o edital de licitação da concessão (http://www.artesp.sp.gov.br/audienciasPublicas_Raposo/arquivos/Anexo%2004_CORREDOR%20RAPOSO%20TAVARES.pdf).

Nunca trafeguei pela Turnpike, auto-estrada da Flórida, EUA, famosa por sua qualidade. Mas internet tem dessas coisas: alguém trafegou, conhece, relata. Tem no site do Azenha, http://www.viomundo.com.br/opiniao/os-pedagios/
e transcrevo um trechinho: "Fazendo a conversão, na New York Thruway, grosseiramente, o motorista paga 3,5 centavos de real por quilômetro rodado. Na Flórida Turnpike, 8,5 centavos de real por quilômetro rodado."

De qualquer forma, basta simples consulta ao Toll Calculator da concessionária da Turnpike (será que a CART tem algo semelhante, tem ao menos um site que seja mais informação e menos propaganda?), em http://www.floridasturnpike.com/TRI/index.htm

Escolhi o percurso abaixo, de aproximadamente 100 milhas, ou seja, 161,26 km:
From: M193 - Yeehaw Junction (SR 60)
To: M93 - Lake Worth (Lake Worth Rd.)
For a 2 axle vehicle to travel 100.20 miles
Toll with SunPass is $5.90
Toll with Cash is $7.50

Só fazer as contas, pelo dólar de hoje, 21/1/2010:
1,78700 * 7,50 = 13,4025
13,4025 / 161,256 = 0,0831131865

Portanto, pouco mais de 8 centavos de real por quilômetro rodado, de carro, se pagamento em dinheiro.

Aqui, no CRRT da CART, quase 11 centavos de real por quilômetro rodado, nove pedágios a cada entre 43 e 63 (média 49,3) km. Essa quilometragem inclui os acessos a cada uma das cidades (algo como "quilometragem bruta", mas você só percorrerá a "quilometragem líquida"). Você observou qualquer redução no custo do IPVA desde que começaram os pedágios concedidos? Falacioso, portanto, o argumento que diz "quem usa, paga". Você paga, usando ou não. E depois, se usar, paga novamente, e paga caro, muito caro. Então, você diria: ah, mas a rodovia agora é segura, está muito melhor. Está mesmo muito melhor? Melhorou algo na segurança, há catadióptricos de sinalização, guard-rails e sistemas anti-ofuscamento? Tem lá no edital de concessão mas, na prática, isso existe? Os SAU (Serviço de Atendimento ao Usuário) são feitos de containers pintados de branco, longe das pistas de rolamento. Compare com a Rodovia do Oeste (Castello Branco), onde os SAUs são à beira da rodovia. Mas poderiam ser a centenas de metros da pista, porque o edital só fala em distância mínima, e não máxima.

Regular, exercer a função de regulação, custa caro. Custa caro ao Estado manter uma agência reguladora, que regula distância mínima mas não máxima, que diz uma porção de coisas que devem ser feitas mas depois não fiscaliza. Claro, nós, usuários, podemos reclamar. Ao bispo. Ao bispo de Assis, coitado. Porque, se você quiser exercer cidadania, prepare-se para uma grande perda de tempo, já que a agência reguladora, a que custa caro, será pouco mais do que uma garota de recados das concessionárias, como, de resto, são todas as agências reguladoras formadas desde o grande marco da principal reguladora que só regula o que é de interesse das concessionárias, a ANATEL do Serjão, modelo de privatização de todo um mundo sob a visão FHC.


É bom mencionar que a CART é da Invepar, estrutura societária e de negócios formada pela construtora OAS, pela PREVI, e, mais recentemente, FUNCEF e PETROS. Uma grande construtora, três grandes fundos de pensão.

Há uma pergunta final. Todos sabem que é profundamente impopular a instituição de pedágios. Por que fazer isso às vésperas de importante eleição nacional? É só uma pergunta, claro. Mas há outra. De onde sairão os recursos financeiros das custosas eleições presidenciais que se aproximam? Ganha picolé (de Sechium edule, uma cucurbitácea conhecida por chuchu) quem conseguir responder.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Ubatuba: buraco redondinho, rampa para inglês ver


                                                                                                                                       foto Luiz Moura 

Duas coisas me chamaram a atenção ao ficar, como faz o Luiz Moura, De olho em Ubatuba: primeiro, o formato do “Buraco do Resgate”. Bem redondinho, escuro, faltam-lhe, claro, as pregas, mas me lembra as latrinas rudimentares que às vezes encontramos na zona rural do interior caipira. O formato de agora é igualzinho ao registrado pelo Moura em setembro de 2005. Paliativos, parece, são a tônica para enfrentar os problemas da cidade, grandes e pequenos. A causa não vem ao "causo", trabalha-se só na consequência. Tapando buracos. Assis tinha um enorme buracão, uma erosão que acompanhava o traçado de um córrego, verdadeiro riozinho caudaloso quando das grandes chuvas. Até que alguém resolveu levar o problema a sério. Hoje chama-se "Parque do Buracão", abriga uma grande área de lazer, um Museu de Arte Primitiva, salas e salão para eventos e reuniões dos Conselhos Municipais e está perfeitamente integrado, urbanisticamente, à cidade. O córrego foi em parte canalizado e hoje, mesmo quando das grandes chuvas, não mais erode as laterais de seu leito.
Cito Assis porque conheço um pouco melhor o que se passa ali, mas há uma grande variedade de cidades, grandes e pequenas, onde os problemas, grandes e pequenos, são levados a sério por um ou outro - nem todos - governante municipal, geralmente não apequenado.
Mas as fotos do Moura, tanto a de 2005 como a de agora, mostram um outro problema: aparentemente, há rampa de acesso para cadeirantes, na esquina (imagem acima). Mas é só aparência. Qualquer um que já tenha estado em cadeira de rodas, ou empurrado uma cadeira de rodas, sabe que o degrau existente naquela rampa dificulta muito a acessibilidade. Sozinho, dificilmente o cadeirante conseguirá transpor o obstáculo. Precisará de ajuda, e não é essa a ideia da acessibilidade. Para tudo o que o deficiente físico possa fazer sozinho deve ser provida a possibilidade de fazê-lo sozinho. Do jeito que é a rampa, trata-se de mais uma obra para inglês ver.

-Texto originalmente publicado na revista eletrônica  O Guaruçá


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Ubatuba e as democracias adjetivadas


É possível que venhamos a divergir um bocado, eu e meu amigo culto e ainda oculto Eng. Guaracy, mas tenho certeza de que sempre num nível de elevado respeito.
Pergunta o Eng. Guaracy: E a democracia cultural em Ubatuba?
Quem podia dizer que não havia democracia na ditadura pós-64? No entanto, a que havia, naquela época, era a democracia não-democracia, a democracia adjetivada. Se exige algum adjetivo para caracterizá-la, não é democracia, segundo diz uma corrente de cientistas políticos. Democracia limitada é não-democracia. As eleições, para os principais níveis, eram indiretas. Os partidos políticos estavam proscritos, só existiam uma Aliança e um Movimento. Claro que isso não deu certo, e vieram as sublegendas Arena 1, Arena 3, MDB 1, MDB 2. Mas só para candidatos a prefeito ou a vereador (exceto nas capitais). Para governador, presidente e prefeitos das capitais as "eleições", que eram a sacramentação dos ungidos, eram indiretas. Ora, argumentavam naquela época alguns, nos Estados Unidos as eleições presidenciais também são indiretas. Há um complicado método de delegados por Estados federados, mas o que vale mesmo, na prática, é o voto popular, desde as prévias para indicação dos candidatos. Mesmo lá o método experimenta seus limites, como a suspeita de que Bush filho, na primeira eleição, teve menor votação popular que seu opositor. Aqui, em São Paulo, o governador ungido ou era de família quatrocentona ou preposto de instituição financeira. Era também a "democracia" da ocupação do Estado pelos coronéis. Não o coronelato dos sertões, mas um tipo peculiar de nepotismo sob a forma de ocupação dos cargos executivos operacionais do Estado por coronéis do Exército, da Aeronáutica, da Marinha.
Então, por raciocínio análogo, em Ubatuba, existe democracia cultural, ninguém está impedido de produzir cultura. Jamais me canso de citar, exemplo disso é O Guaruçá - Folclórico e Alegórico, que se apresenta ao ar livre ou em espaços cobertos, mas sempre gratuitamente, mesmo sem ter patrocínio oficial. No entanto, é uma não-democracia cultural, porque é sabido que a produção e a reprodução de cultura somente sobrevivem se tiverem um mínimo de apoio oficial, dados os custos envolvidos. A OSESP, tucana até a raiz da alma, é o que é porque conta com apoio oficial, além, claro, de ter uma invejável carteira de assinantes. É esse sistema que permite uma orquestra de alta qualidade, que funciona regularmente na Capital e que, em curta temporada uma vez por ano, vai também ao Interior. A Virada Cultural consegue levar qualidade a uma grande quantidade de público, na Capital e no Interior. Assim também iniciativas privadas, como as do SESI e do SESC.
Em Ubatuba, porém, o mau hábito da apropriação particular do que é público, ou deveria ser, é algo arraigado, por anos a fio de desmandos e uma certa compassividade da população. Talvez contribua para essa passividade o que relata o Marcos Guerra, em Dois pesos e duas medidas em Ubatuba. O caso do cercado da praia do Cruzeiro, documentado em foto do Luiz Moura, sempre De Olho em Ubatuba, é exemplo dessa apropriação. A indignação com o que acontece é um primeiro passo. Mas, como dizia Santo Agostinho, "A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão. A coragem, a mudá-las". Talvez ainda nos falte a coragem.
Por P.S., cito que já sabia dos eventos em Oscar Bressane: encontrei-me casualmente com o prefeito Jairão, de Tarumã, num corredor de supermercado. Grandes festas abertas a toda a população integram, de alguma forma, o costume de pequenas cidades do Interior, se bem que, a meu ver, com um certo gosto de panis et circens, com o que os romanos continham a plebe, para não ter que usar a pax romana tradicional. Recolho agora de memória: por volta de 1977, 1980, sei lá, houve uma festança como a descrita pelo Eng. Guaracy na cidade de Jales (SP), para comemorar a inauguração da Rodovia dos Três Prefeitos. Chama-se assim porque quando a rodovia, que liga Jales a Aparecida d’Oeste, estava em fase final de construção, o carro que levava três prefeitos de cidades por ela servidas chocou-se, à noite, contra um monte de brita e dois morreram na hora. Outro ficou em coma por meses e depois faleceu também. Hoje a rodovia SP 563 chama-se Euphly Jales e perdeu-se a memória dos prefeitos mortos quando voltavam de São Paulo, à noite, onde tinham ido, em estreita cooperação, ido buscar recursos para suas minúsculas cidades.
A preservação da história, através de nomes de rodovias, nem sempre é justa e, por vezes, é injusta. Euphly Jales deu nome a uma das cidades que fundou, Jales, e deu o nome de seu pai, Francisco, a outra cidade fundada por ele, São Francisco. A rodovia que as liga chama-se, hoje, Rodovia Euphly Jales, mas seria mais justo que tivesse o nome dos Três Prefeitos que morreram por ela. Tanto batalharam que a conseguiram, mas acabaram morrendo nela. Hoje estão esquecidos e, por política, força política, o nome da rodovia nada tem a ver com eles. Lembra-me a Rodovia do Oeste, hoje chamada de Castello Branco, general da ditadura que jamais teve qualquer coisa a ver com projeto e traçado da autoestrada.
Como se vê, uma coisa leva a outra, e a outra, e eis-me aqui fazendo choramingação. Coisa feia.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruça


sábado, 2 de janeiro de 2010

Ubatuba, turismo, vocação e competência


É o caso de me repetir: uma mesma questão comporta, no mínimo, dois lados. Em geral, entretanto, são múltiplos lados, divergentes, concorrentes, conflitantes, afins e toda a sorte possível de combinações. O Eng. Guaracy diz que É tudo uma questão de competência. Concordo, mas não creio que seja só competência administrativa. Há que ter muita competência política, para formar um consenso mínimo sobre o que fazer.


O Eng. Guaracy descreve o caso de Praia Grande, que optou por um caminho de desenvolvimento baseado na urbanização da orla e permissão para grandes edifícios-dormitórios. No entanto, a urbanização da orla foi precedida de todo um trabalho de infraestrutura sanitária, especialmente o custoso sistema de tratamento de esgotos e emissários submarinos. Depois, calçadão, ciclovia, um trânsito mais organizado, vagas para deficientes quando isso ainda não era da lei, os quiosques no calçadão, algumas mesas na areia. Nem tudo são flores, contudo. Às vezes há coqueiros. Lembro-me com nitidez de um quiosque cujo permissionário resolveu plantar coqueiros na areia da praia, para oferecer, talvez, alguma sombra aos seus fregueses. Demarcou uma área perfeitamente retangular, plantou os coqueiros com espaçamento centimetricamente calculado, e o que se vê, hoje, de alguma janela dos muitos edifícios altos da orla, se assemelha a uma praia artificial. Não tem o encanto de uma praia preservada. Nem mesmo o bom gosto de um paisagismo confortável aos olhos, com valor estético.


Praia Grande optou por liberar o espaço vertical para grandes empreendimentos, o que resultou em prédios altos e, de certa forma, nesse ponto em particular, uma miniatura de um grande centro, como São Paulo, por exemplo. Prédios altos demandam sistemas públicos consistentes de abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo e de trânsito e estacionamento. É um crescimento orientado a um segmento da sociedade. Mas não impede que a higiênica orla, talvez de concepção higienista, seja palco de arrastões que de vez em quando mostram as debilidades de um crescimento fundado na desigualdade.


Ubatuba já cometeu seus pecados no passado, permitindo que praias públicas se transformassem em verdadeiras praias particulares, e permitiu arruamentos públicos ocupados e fechados com cancela, como se fossem condomínios particulares fechados. A situação hoje é tão esquisita que algumas dessas casas pé-na-areia não têm outra opção de trânsito de seus veículos que não a praia - onde é proibido trafegar. Permitiu marinas em locais inconvenientes, inadequados, sem os necessários cuidados com o meio-ambiente. Autorizou excrescências, que enfeiam a cidade, como "varandas" rasgando os morros de matas que deveriam estar preservadas. Se o Ministério Público não se mexesse um pouco, os interesses dos grandes empreendimentos imobiliários já teriam posto a perder o encanto de Domingas Dias e outros belos lugares que são, ainda, o diferencial de Ubatuba.


O que nos incomoda também nos protege, desse ponto de vista. Praia Grande conta com a possibilidade representada por dois grandes sistemas rodoviários, que fazem, por exemplo, a avenida Ricardo Jafet ser a "rua da praia". Já o acesso a Ubatuba só se dá pelas sinuosas pistas simples da Tamoios e da Osvaldo Cruz, ou então o percurso mais longo da Rio-Santos. Quem vem a Ubatuba quer mesmo vir a Ubatuba, não simplesmente "descer para a praia".


É inegável, acho, que a vocação de Paraty está em sua roupagem histórica, na imagem de um lugar bucólico. Se não cuidar de preservar sua vocação, Paraty será apenas mais um de qualquer outro destino turístico. Ubatuba precisa conhecer e reconhecer qual sua vocação e tomar um rumo na vida. Uma parte do Município é urbe, e precisa ser criteriosamente urbanizada. Outra parte é constituída por áreas que precisam ser preservadas, algumas intocadas mesmo.


Há uma discussão um tanto segmentada quanto a isso, em todo o Litoral Norte. São Sebastião vive discutindo se amplia o limite vertical de quatro pisos. A pressão do lobby das imobiliárias é grande, mas a resistência da população também é grande. Em lugares minúsculos, como Paúba, a hostilidade dos habitantes a qualquer ideia de descaracterização de seu pequeno paraíso, com o pôr-do-sol no mar, se expressa em atuação política e também de mobilização popular. Ilhabela, em suas marchas e contramarchas, quer melhorias, e infraestrutura turística melhorada (acaba de garantir um dinheirão, mais de um milhão de reais, para três píeres e pavimentação de duas ruas), mas sabe que não pode descaracterizar-se do que é de seu próprio nome: uma ilha, e precisa continuar sendo bela. E certamente não a descaracterizará ter um Centro de Convenções e um Teatro Municipal, com verbas do Ministério do Turismo e do Departamento de Apoio ao Desenvolvimento das Estâncias da ordem de cinco milhões de reais.


Preservar não significa congelar, fechar a cidade para balanço para gáudio e ócio dos saudosistas ou da militância ecológica radical. Há que ter visão de futuro e trabalhar dobrado, porque nossas opções são poucas, espremidos que estamos entre o mar e a montanha. Buscar dinheiro onde há dinheiro (já perdemos o dinheiro do pré-sal, lembrou-nos o Eng. Guaracy, em Ubatuba na grande imprensa). Ubatuba, yes, nós temos banana-da-terra e também somos Estância. Também podemos postular nosso lugar ao sol. Basta ter - qual é mesmo a palavra que o Eng. Guaracy usa? - competência. Mas, fundamentalmente, abandonar a anemia política, a baixa estatura quando se trata de cuidar do presente e pensar no futuro. E, claro, ter competência para executar.
- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Ubatuba, praias, quiosques e o Estado de Direito


Uma mesma questão comporta, no mínimo, dois lados. Em geral, entretanto, são múltiplos lados, divergentes, concorrentes, conflitantes, afins e toda a sorte possível de combinações. Portanto, várias podem ser as abordagens sobre um mesmo tema, como é, atualmente, o caso dos quiosques e das mesas, cadeiras e guarda-sóis nas praias. Um dos lados, contudo, tem prevalência sobre todos os demais: vivemos num Estado de Direito, sob o império da lei - quer dela gostemos, quer dela não gostemos. É faculdade minha, pessoalmente, agir contra legem, se me aprouver, mas é claro que correndo todos os riscos inerentes ao gesto. Posso, se quiser, encher a cara e sair dirigindo por aí, pondo em risco a vida de pessoas. Mas estarei sujeito a prisão, ao pagamento de multa e aos pontos na CNH. Não concordo com alguns dos pedágios (especialmente os mais recentes) plantados pelo governo do Chirico Serra, posso decidir passar por eles sem pagar, mas multa e pontos na carteira certamente virão.
No entanto, o Poder Público não pode. Não tem a faculdade de agir contra a lei. É obrigado a cumpri-la. Não pode autorizar, nem admitir, que seus motoristas dirijam bêbados. Não pode autorizar, nem sequer insinuar, que seus fiscais devam fazer vistas grossas. O mesmo vale quanto a decisões judiciais. Posso, se quiser, deixar de cumprir algum mandamus do juiz, mas sujeito às consequências do gesto. O Poder Público não pode e, se o fizer, o gestor público será pessoalmente responsabilizado. Teoricamente, claro, porque, afinal, estamos no Brasil, onde o Estado de Direito e o império da lei ainda estão em construção. Gilmar Dantas que esclareça, se conseguir.
Desse lado, ou ponto de vista, a recente medida judicial em caráter liminar proibindo cadeiras e mesas dos quiosqueiros nas praias precisa ser cumprida à risca, pelo Poder Público, que tem o dever de fiscalizar. Cada quiosqueiro avaliará seus próprios riscos e acatará, ou não, a decisão judicial, correndo os riscos correspondentes e se sujeitando às penalidades respectivas. Tudo isso, claro, sem prejuízo da continuidade dos argumentos de cada lado junto ao Poder a quem cabe julgar litígios, o Judiciário.
Abre-se aqui interessante questão. Se causa prejuízo, e efetivamente causa, especialmente na alta temporada, agir contra a lei tal como interpretada pela magistrada federal, isto significa que o lucro antes existente era ilícito. Posso ir à Mata Atlântica, colher palmitos e vendê-los na beira da estrada, mas o lucro que obtiver disso será ilícito. Então, por favor, não vamos usar o argumento do prejuízo, no presente debate. Por corolário, nem dos empregos perdidos.
Posso, tenho a faculdade, e mesmo o dever, de, sendo quiosqueiro, ser quiosqueiro congregado mariano. Não coloco mesas nem cadeiras na praia, que é bem público para o uso de todos, e ponto. Não me aproprio, como particular, de um espaço que é público. Mas se meu quiosque for o de número 432, e os de números 428, 429, 430, 431, 433, 434 fizerem isso, sem nem ao menos serem incomodados pela fiscalização e pelas multas, serei um congregado mariano com nariz de palhaço. Serei vítima de concorrência desleal e ilegal. Então, ou vale para todos, ou vale para ninguém, e então temos as praias concorrentes, de Paraty a Bertioga. Ou todas as praias brasileiras ficam livres do enxame de mesas e cadeiras dos quiosqueiros, ou... No entanto, é claro que, como moro aqui, vou cuidar daqui. Paraty que se cuide, São Sebastião idem.
Uma ressalva: como pessoa física, como particular, posso levar minha cadeirinha de praia, minha mesinha de praia desmontável, meu guarda-sol colorido e não estarei cometendo nenhuma ilegalidade. Quem não pode colocar mesas e cadeiras na praia é a empresa, o comerciante, dia após dia, com intuito de lucro.
Na lacuna da lei (e mesmo, se apenas interpretado que há lacuna na lei), cabe ao chefe do Poder Executivo adotar disciplina. Aparentemente, era o que acontecia por aqui. Uma espécie de solução de compromisso, algo ditado mais pelo bom senso do que pela fria literalidade da lei. Cada específica praia tem sua específica peculiaridade. Não me ocorre ver as praias do extremo norte de Ubatuba infestadas por mesas e cadeiras de quiosqueiros. Não condiz com a peculiaridade do local. Contudo, não vejo grande problema em, na Praia Grande, ou na Toninhas, ou nas grandes praias de Praia Grande ou São Sebastião, ter algumas, poucas, mesas e cadeiras bem junto dos quiosques, porque me poupará o trabalho de levar as minhas próprias mesinhas e cadeirinhas. Também não precisarei levar minha farofa - tenho todo o direito de levar minha farofa - e poderei, correndo os riscos correspondentes, me servir dos petiscos do quiosque (a qualidade dos alimentos na praia é um caso à parte e precisaria ser tratado à parte, em outro debate).
Mas algo saiu errado. A invasão descontrolada das mesas e cadeiras, com o cúmulo da delimitação como privado de um espaço que é público, tanto por sua natureza como pela lei, chegou às raias do absurdo, aqui em Ubatuba. Houve quem colocasse verdadeiras divisas, fronteiras, para delimitar o espaço de seu quiosque na praia, quase até as ondas da maré alta. De tanta sede ao ir ao pote, os quiosqueiros (nem todos) acabaram quebrando, eles próprios, o pote, com a plácida complacência do Poder Público Municipal.
Vim a Ubatuba, em férias familiares, quando meus filhos mais velhos tinham ao redor de 8, 10 anos de idade. Mas depois disso, fiquei mais de vinte anos sem voltar a Ubatuba. Tive péssima impressão daqui, quando tentei ir a uma praia e fui barrado numa cancela (não me lembro bem, mas acho que foi a da Praia Dura), pois não era morador nem convidado do "condomínio" em ruas públicas. Acabei indo, com a família, àquela praia, que é bem público, mas a pé, por um caminho tortuoso, passando por algumas cercas de arame farpado e sob olhares de reprovação dos "donos" do lugar. Fosse hoje, simplesmente chamaria a polícia, para abrir a tal cancela. Mas na época faltou disposição (e tempo, foram férias curtas) para fazer valer direitos de cidadão. Turista tem disso: quando é bem acolhido, volta. Quando se sente rejeitado, percebe que o mundo oferece tantos, mas tantos lugares, que não é necessário voltar a algum onde foi vítima de algum constrangimento.
O ponto de discórdia, hoje, são as mesas e cadeiras na praia. As praias dos municípios vizinhos oferecem isso, com maior ou menor controle, com melhor ou pior bom senso. O que a lei manda, manda e pronto. Se não houver lacunas, vale erga omnes, inclusive contra quiosqueiros e contra turistas ávidos da comodidade tomada como se particular fosse, às custas do bem público que são as praias. Mas se admitir uns buraquinhos, umas lacunas, vamos discutir isso, vamos conversar, vamos dialogar, vamos assumir compromissos, vamos, se for o caso, tentar uniformizar por lei federal. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, nem tanto à fria (e às vezes fria porque morta) letra da lei, nem tanto ao descumprimento da lei, por crime, por imprudência, por contra legem ou por falta de bom senso (sempre é possível pressupor que uma das bases do ordenamento legal seja o velho e bom bom senso).
Que tal, educadamente, abrir amplo debate sobre tudo isso, sem nos colocarmos por princípio, previamente, como donos da verdade? Seria possível tal façanha aqui em Ubatuba, sem qualquer anãozice intelectual? Sem anãozice política?
Faço a pergunta, mas, verdadeiramente, não tenho a resposta. Quem a tenha, se quiser, que a coloque.

-Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá