sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Ubatuba, praias, quiosques e o Estado de Direito


Uma mesma questão comporta, no mínimo, dois lados. Em geral, entretanto, são múltiplos lados, divergentes, concorrentes, conflitantes, afins e toda a sorte possível de combinações. Portanto, várias podem ser as abordagens sobre um mesmo tema, como é, atualmente, o caso dos quiosques e das mesas, cadeiras e guarda-sóis nas praias. Um dos lados, contudo, tem prevalência sobre todos os demais: vivemos num Estado de Direito, sob o império da lei - quer dela gostemos, quer dela não gostemos. É faculdade minha, pessoalmente, agir contra legem, se me aprouver, mas é claro que correndo todos os riscos inerentes ao gesto. Posso, se quiser, encher a cara e sair dirigindo por aí, pondo em risco a vida de pessoas. Mas estarei sujeito a prisão, ao pagamento de multa e aos pontos na CNH. Não concordo com alguns dos pedágios (especialmente os mais recentes) plantados pelo governo do Chirico Serra, posso decidir passar por eles sem pagar, mas multa e pontos na carteira certamente virão.
No entanto, o Poder Público não pode. Não tem a faculdade de agir contra a lei. É obrigado a cumpri-la. Não pode autorizar, nem admitir, que seus motoristas dirijam bêbados. Não pode autorizar, nem sequer insinuar, que seus fiscais devam fazer vistas grossas. O mesmo vale quanto a decisões judiciais. Posso, se quiser, deixar de cumprir algum mandamus do juiz, mas sujeito às consequências do gesto. O Poder Público não pode e, se o fizer, o gestor público será pessoalmente responsabilizado. Teoricamente, claro, porque, afinal, estamos no Brasil, onde o Estado de Direito e o império da lei ainda estão em construção. Gilmar Dantas que esclareça, se conseguir.
Desse lado, ou ponto de vista, a recente medida judicial em caráter liminar proibindo cadeiras e mesas dos quiosqueiros nas praias precisa ser cumprida à risca, pelo Poder Público, que tem o dever de fiscalizar. Cada quiosqueiro avaliará seus próprios riscos e acatará, ou não, a decisão judicial, correndo os riscos correspondentes e se sujeitando às penalidades respectivas. Tudo isso, claro, sem prejuízo da continuidade dos argumentos de cada lado junto ao Poder a quem cabe julgar litígios, o Judiciário.
Abre-se aqui interessante questão. Se causa prejuízo, e efetivamente causa, especialmente na alta temporada, agir contra a lei tal como interpretada pela magistrada federal, isto significa que o lucro antes existente era ilícito. Posso ir à Mata Atlântica, colher palmitos e vendê-los na beira da estrada, mas o lucro que obtiver disso será ilícito. Então, por favor, não vamos usar o argumento do prejuízo, no presente debate. Por corolário, nem dos empregos perdidos.
Posso, tenho a faculdade, e mesmo o dever, de, sendo quiosqueiro, ser quiosqueiro congregado mariano. Não coloco mesas nem cadeiras na praia, que é bem público para o uso de todos, e ponto. Não me aproprio, como particular, de um espaço que é público. Mas se meu quiosque for o de número 432, e os de números 428, 429, 430, 431, 433, 434 fizerem isso, sem nem ao menos serem incomodados pela fiscalização e pelas multas, serei um congregado mariano com nariz de palhaço. Serei vítima de concorrência desleal e ilegal. Então, ou vale para todos, ou vale para ninguém, e então temos as praias concorrentes, de Paraty a Bertioga. Ou todas as praias brasileiras ficam livres do enxame de mesas e cadeiras dos quiosqueiros, ou... No entanto, é claro que, como moro aqui, vou cuidar daqui. Paraty que se cuide, São Sebastião idem.
Uma ressalva: como pessoa física, como particular, posso levar minha cadeirinha de praia, minha mesinha de praia desmontável, meu guarda-sol colorido e não estarei cometendo nenhuma ilegalidade. Quem não pode colocar mesas e cadeiras na praia é a empresa, o comerciante, dia após dia, com intuito de lucro.
Na lacuna da lei (e mesmo, se apenas interpretado que há lacuna na lei), cabe ao chefe do Poder Executivo adotar disciplina. Aparentemente, era o que acontecia por aqui. Uma espécie de solução de compromisso, algo ditado mais pelo bom senso do que pela fria literalidade da lei. Cada específica praia tem sua específica peculiaridade. Não me ocorre ver as praias do extremo norte de Ubatuba infestadas por mesas e cadeiras de quiosqueiros. Não condiz com a peculiaridade do local. Contudo, não vejo grande problema em, na Praia Grande, ou na Toninhas, ou nas grandes praias de Praia Grande ou São Sebastião, ter algumas, poucas, mesas e cadeiras bem junto dos quiosques, porque me poupará o trabalho de levar as minhas próprias mesinhas e cadeirinhas. Também não precisarei levar minha farofa - tenho todo o direito de levar minha farofa - e poderei, correndo os riscos correspondentes, me servir dos petiscos do quiosque (a qualidade dos alimentos na praia é um caso à parte e precisaria ser tratado à parte, em outro debate).
Mas algo saiu errado. A invasão descontrolada das mesas e cadeiras, com o cúmulo da delimitação como privado de um espaço que é público, tanto por sua natureza como pela lei, chegou às raias do absurdo, aqui em Ubatuba. Houve quem colocasse verdadeiras divisas, fronteiras, para delimitar o espaço de seu quiosque na praia, quase até as ondas da maré alta. De tanta sede ao ir ao pote, os quiosqueiros (nem todos) acabaram quebrando, eles próprios, o pote, com a plácida complacência do Poder Público Municipal.
Vim a Ubatuba, em férias familiares, quando meus filhos mais velhos tinham ao redor de 8, 10 anos de idade. Mas depois disso, fiquei mais de vinte anos sem voltar a Ubatuba. Tive péssima impressão daqui, quando tentei ir a uma praia e fui barrado numa cancela (não me lembro bem, mas acho que foi a da Praia Dura), pois não era morador nem convidado do "condomínio" em ruas públicas. Acabei indo, com a família, àquela praia, que é bem público, mas a pé, por um caminho tortuoso, passando por algumas cercas de arame farpado e sob olhares de reprovação dos "donos" do lugar. Fosse hoje, simplesmente chamaria a polícia, para abrir a tal cancela. Mas na época faltou disposição (e tempo, foram férias curtas) para fazer valer direitos de cidadão. Turista tem disso: quando é bem acolhido, volta. Quando se sente rejeitado, percebe que o mundo oferece tantos, mas tantos lugares, que não é necessário voltar a algum onde foi vítima de algum constrangimento.
O ponto de discórdia, hoje, são as mesas e cadeiras na praia. As praias dos municípios vizinhos oferecem isso, com maior ou menor controle, com melhor ou pior bom senso. O que a lei manda, manda e pronto. Se não houver lacunas, vale erga omnes, inclusive contra quiosqueiros e contra turistas ávidos da comodidade tomada como se particular fosse, às custas do bem público que são as praias. Mas se admitir uns buraquinhos, umas lacunas, vamos discutir isso, vamos conversar, vamos dialogar, vamos assumir compromissos, vamos, se for o caso, tentar uniformizar por lei federal. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, nem tanto à fria (e às vezes fria porque morta) letra da lei, nem tanto ao descumprimento da lei, por crime, por imprudência, por contra legem ou por falta de bom senso (sempre é possível pressupor que uma das bases do ordenamento legal seja o velho e bom bom senso).
Que tal, educadamente, abrir amplo debate sobre tudo isso, sem nos colocarmos por princípio, previamente, como donos da verdade? Seria possível tal façanha aqui em Ubatuba, sem qualquer anãozice intelectual? Sem anãozice política?
Faço a pergunta, mas, verdadeiramente, não tenho a resposta. Quem a tenha, se quiser, que a coloque.

-Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá

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