quinta-feira, 12 de agosto de 2010

De Viseu a Ubatuba, como cuidar dos miúdos


Peço-te desculpas, Pinto Durão, pela demora em responder-te. Sinto-me desvanecido com tuas gentis e graciosas palavras, as quais agradeço. Hei de concordar contigo que algo cheira mal, e a bem podre, no reino das terras de Coaquira, podridão que atribuo à política local, que chamo de nanica. Também aceito que é comum vermos brandida a espada da justiça e da moral em meio a esse putrefato pano de fundo, mas não aceito incorrer em generalizações que, por sua especial natureza, são sempre perigosas. Nos fatos narrados, conhecidos e reconhecidos até mesmo aqui, no pé do morro do Funhanhado, a indevida interferência no processo eleitoral que deu origem a tudo isso aconteceu sim, como se fosse apenas mais um loteamento irregular, só que desta vez de cargos num Conselho de nobres funções.
Digo-as nobres, Durão, porque são funções que se destinam a proteger nossos bens mais preciosos, que são nossas crianças e adolescentes, depositários da esperança de um futuro melhor do que nosso lodacento presente, tal como manguezal degradado onde se salva apenas um ou outro siri. E ainda bem, convenhamos, ó Durão, que um desses siris é o nosso O Guaruçá, único periódico local que se presta a debate de ideias e veiculação de informações sem depender da chancela oficial dos ocupantes do Paço, seja ele o da presidência do Concelho ou seja ele o Anchieta. Que possibilita, pois sim, que respeitosamente nos estranhemos no que reciprocamente não concordamos, e nos coloquemos lado a lado, no que concordamos, tal como no título de sua pública epístola. Presente o respeito, nem tu, Pinto Durão, atrás de mim, nem eu, Machado, ao fim e ao cabo, mais afiado que espada, atrás de ti.
A leonina encíclica papal que citaste, Das Coisas Novas, prenunciou alguns evidentes exageros, como a tutela soviética sobre seus miúdos, que os levou mais para o coletivo laico (e mesmo ateu) do que para a família. Mas foi condescendente com o que, no seio da Europa central, aconteceu depois, quando a máquina nazista, querendo perpetuar uma raça que chamava de pura, perfilava mães como reprodutoras, e seus mais destacados espécimes machos para que gerassem rebentos de propriedade do governo. Quando essa mesma máquina cometeu o mais descarado genocídio, ceifando miúdos a granel, os guias espirituais mantiveram-se calados. Um é até candidato a santo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: intervenção do Estado em questão de tal delicadeza, só se for em defesa das crianças e adolescentes, e nada mais.
Sabemos cá, Durão, nestas terras d´além-mar, do cuidado que tendes com vossos miúdos, especialmente na vossa terra de Viriato, terror romanorum. Ubatuba, com seus 700 km² e uns 80 mil habitantes, e Viseu, com seus 500 km² e uns 99 mil habitantes, têm profunda diferença: poucos são os imigrantes, nas terras portuguesas. Muitos os são aqui, vindos de vários Estados, com destaque para Minas Gerais. A falta de apego à terra, a luta pela sobrevivência, acabam muitas vezes por destruir laços e malhas sociais, com reflexos na constituição das famílias, problemas que, se os tendes aí, são mínimos.
Jamais serei tão ácido como o saramago que teima em nascer entre ruínas, nem de letras tão brilhantes como o Saramago que colocou o mundo lusófono no panteão do grande prêmio inventado pelos europeus inventores da dinamite. Mas guardo, de ambos, um pouco: da planta, o nascer e renascer nas ruínas históricas e recentes de Ubatuba. Do escritor, a negação a muitos dos valores professados por teus apreciados guias espirituais. Comunista declarado ele, de matriz socialista eu, por paradoxo apreciadores ambos duns escritos doutorais agostinianos, que do nascimento nos sabíamos (eu, por mera sorte, ainda sei, pois ele cometeu a impropriedade, a falta de educação, de ir-se) inter feces et urinam. Dessa condição igualitária do nascimento desdobram-se questões outras, como a dos cuidados com nossos miúdos. Cá, a pobreza, a desigualdade, o descaso, a deseducação, espancaram o valor família, a família como um ninho, pelo qual tanto se bate, em conceituação científica e humanitária, minha Marlene. Aí, do outro lado da poça atlântica, cultivam-se a educação e a mínima igualdade económica (falamos, é claro, do pós-salazarismo e da Comunidade Europeia).
Corremos cá o risco de, literalmente, assim viver, em meio a fezes e urina, como bem demonstrou o grande lusófono em sua alegoria que intitulou de ensaio, sobre a cegueira. É como vivem alguns de nossos miúdos, abandonados na escatologia do descaso, da miséria, da deseducação, da pobreza d´alma, seja o que for que isso - a alma - signifique. Cá, portanto, é necessário tutelar o básico, o direito à vida, de nossos miúdos, o que se tenta fazer com Conselhos institucionais, criados por já vintenário estatuto.
Adquirimos uns maus hábitos lusitanos, de criar nossos filhos a sopapos, pois nem nos tempos do grande Cunhambebe, nem inda hoje, no Xingu, os nativos daqui espancam crianças. O cauim não engendrava violências domésticas, como a cachaça logo aqui introduzida, quinhentistas tempos ainda. Redimiram-se os portugueses, inda que à custa de férrea vontade iluminista aliada ao porrete implacável do juiz da Comunidade Europeia, dos maus-tratos aos miúdos, trocando tamancas e cintos por lápis e educação.
Então, pois, é o que defendo, deve sim ter o Estado alguma prudente tutela sobre nossos miúdos, para protegê-los. E, por consequência, não usar essa tutela, os Conselhos Tutelares, para nanica, rasteira politicagem.
Não conheço tão profundamente a política da terra coaquira, pois, sabes, apregoo sempre, cheguei há pouco de fora. Não sei então dizer do agrado ou desagrado que tal ou qual vereador, eleito antecipadamente presidente, vice ou o que seja, cause nos que estão à frente do Poder Executivo daqui. Esses mistérios resolvem-se nunca, Durão, pois, sabes com certeza, adversários de ontem podem ser aliados de hoje e desafetos de amanhã. Ou, pelo outro lado, o adversário de hoje é o potencial aliado de amanhã, assim como o apaniguado de hoje pode ser amanhã o detrator. Durão, argumentavas a respeito da inclusão do prefeito no rol dos afastamentos. Pois, ora, veja o ocorrido, que corrobora meu olhar sobre a política destas terras, nanica, naniquinha: pôs-se o alcaide a desancar vereador de sua oposição: chamou-lho de cérebro de banana. É que o indigitado edil cobrou apurações sobre a participação do Executivo no tal processo eleitoral. Fato é que ao menos um secretário acabou também afastado de suas funções. Mas nada disso justifica tais destemperos.
Em tua pública missiva, fizeste-me curial e curiosa sugestão. Imaginas, ó Durão, se a aceito e adopto por sobrenome El-Cioaçu? Marota e dúbia grafia, pois em tempos de internet, desejasse eu criar um emeio com tais dizeres, ficaria assim: el-cioacu@. Citaste Curralinhos, que fica no Pará. Então conheces, certamente, Minas Gerais, Estado dos mais famosos do Brasil pela mineirice dos mineiros. Recorro então a meu amigo mineiro Bozzano e sua frase insuperável, no imperativo afirmativo: inclua-me fora dessa, pois.
Mas devo dizer palavra em defesa de Elciobebe, modelo criado, sim, por pândego famoso nestas terras, mas de maneira alguma me "soa a pândegos de casta inferior", pois seu autor não é ninguém menos que o Julinhobebe, que é muito gira. Pândego é sim, quando calha de o ser, mas jamais de casta inferior. É certo que Julinho vê o mundo com olhar superior, não só devido à sua elevada estatura, que assusta seus detratores, talvez devido a infantis temores com grandes bonecos, como os da pernambucana Olinda, mas também por sua pureza d’alma de artista, que o é. Mas sério e cidadão consciente também o é, quando necessário, e é sempre o caso quando se trata de defender a produção cultural nestas terras, de defender árvores e sacis e o exuberante meio-ambiente que ainda temos aqui, de denunciar as patranhas infelizmente corriqueiras no Concelho de Yperoig.
Não hei de acatar, pois, tua sugestão de rebatizar-me, e nisso não quero recuar nem me sentir acuado.
Por final, peço-te, perdoa-me pelos deslizes na Língua Portuguesa, especialmente nestes tempos bicudos de Acordo Ortográfico, um fado a acalentar, um fardo a suportar.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá,
em 09/08/2010

domingo, 8 de agosto de 2010

Promessa de Serra, Ministério dos Deficientes


Serra, creio, teve um surto de paroxismo demagógico.
Quando prefeito de São Paulo - lembram-se? - mandou colocar uns pontiagudos obstáculos para que moradores de rua deixassem de enfeiar vias que tinham viadutos, sob os quais se abrigavam aquelas pessoas. Agora, plena campanha eleitoral presidencial, quer criar novo ministério. Falou o eugenista, com muita propriedade, numa APAE. Passou a mensagem: aberração deve ser tratada como aberração, segregada, cuidada à parte. Uma não-cidadania, um cuidado a ser tido como especial, que permita diferenciar os normais dos anormais. Um Ministério próprio, para discriminar ainda mais. Integrar? Ver como igual, como humano, aquele que tem presente em si a humanidade, mas que ostenta diferenças visíveis ou não? Nem pensar. Vamos criar um mundo à parte para os deficientes, mantendo-os segregados, à guisa de protegidos.
Não, e não. O Ministério dos deficientes, negros, índios, homens e mulheres, homossexuais, transexuais, pardos, travestis, é o Ministério da Educação, e esse já existe. Suas ramificações estaduais, as Secretarias da Educação, estão de dar dó, mas é nelas, no ensino fundamental, que começa a construção da cidadania. Duas décadas do partido de Serra no Estado de São Paulo foram pífios, quando se trata de educação. E agora, quer fazer ministério novo, para ensinar cidadania! É muita cara de pau, demagogia em excesso.
Lugar de criança é na escola, escola pública, com os ajustes e cuidados que forem necessários. Lugar de qualquer criança, deficiente ou não, que será depois adulta, deficiente ou não. Não há que esconder a deficiência, ou a diferença. Há que respeitá-las, há que aprender, no convívio, que pessoas humanas são humanas, acima de qualquer outra caracterização, e como tais, devem ser respeitadas, cuidadas, integradas à sociedade, e não, não e não, discriminadas e segregadas.
Bem, foi um desabafo, com a colaboração da Marlene.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá
em 1/8/2010

domingo, 1 de agosto de 2010

Respostas sobre o afastamento dos três vereadores



Ora, pois. Faz Durão 23 perguntas para insurgir-se contra o afastamento, por medida liminar, de três vereadores do parlamento do Concelho de Ubatuba. É José, mas não é Zé, muito menos Mané, o Pinto Durão. Está a merecer, portanto, as respostas que outro cidadão é  levado a apresentar.
Como mero exercício de superficial retórica, proponho-me a responder às perguntas de Durão.
Não são excludentes prudência e dever de ofício, atributos presentes na decisão liminar do magistrado. O pressuposto é o de que formou livremente seu convencimento e, por dever de ofício, tomou uma decisão. Decidiu, prudentemente, em vista do bem maior que é o bem público, afastar os vereadores com a finalidade de evitar prejuízos e interferências na instrução processual. Com isto respondidas estão as perguntas 11 e 12, pois se trata de instrução processual e não mera investigação, "já encerrada". Ora, pois, não se confunda alhos com bugalhos. Excesso de zelo? Está, é da peripatética, bem no meio a virtude. Mas tímida não precisa, nem deve ser, a virtude, para não pecar por menos, por desleixo ou desídia. O zelo está em zelar, demonstrar cuidado, esmero, atenção, ser cuidadoso, diligente pelo bem público. O excesso seria invalidar todo o processo eleitoral, afastando todos os conselheiros, ou afastar com a finalidade de antecipar pena, o que não ocorreu. Com isto, respondida está a primeira pergunta, avançando já sobre a segunda. Faz todo o sentido a medida cautelar, que não pede mas sim determina o afastamento do exercício do mandato popular dos três vereadores: o zelo pelo bem público e pela moralidade.
Nenhum mal há em expressar preferência por tal ou qual candidato, no âmbito do exercício da cidadania, mas prover meio de transporte, aliciar, usar o peso do mandato popular para intimidação e constrangimento, nisso há mal, sim. O transporte de eleitores, no passado, foi uma praga que, felizmente, arrefeceu de ânimo. Reintroduzir essa prática aqui em Ubatuba nisso há mal, sim.
Não sei ao certo a magnitude da interferência no resultado da eleição, mas foi suficiente para comprometer o processo eleitoral. Raciocinando pelo inverso, ainda que a magnitude tenha sido pequenininha, ainda assim a prática contrária à moralidade ocorreu.
Durão novamente confunde alhos com bugalhos, em sua quinta pergunta: o que entregamos ao vereador, junto com nosso voto, para nos representar no legislativo municipal, é um mandato específico, para legislar e fiscalizar. Onde? No legislativo municipal. Não em qualquer lugar e a qualquer tempo no mundo. Se o vereador quer, como cidadão comum, exercer seu direito de preferência, votando neste ou naquele conselheiro, é de seu direito. Querer me representar nessa empreitada é inadmissível: para o conselho, voto eu (caso queira), diretamente. Não preciso da tutela do edil para isso. Os candidatos, é claro, não são iguais, mas cabe a mim decidir qual melhor me representará - onde, onde? - no conselho.
Mesmo quem não é ordenador de despesas pode causar danos ao erário: basta utilizar mal os recursos administrativos e políticos que lhes são colocados à disposição. Mas não parece ter sido esse o fundamento do afastamento dos vereadores. Portanto, não cabem ilações quanto a essa questão.
Fatos exógenos, Durão? Pois, pois. A atuação do vereador, seria maravilhoso, deveria dar-se no parlamento e em função do parlamento municipal. Mas o que se vê é o uso do mandato para coisas outras que não legislar e fiscalizar. E o uso do mandato remete para os recônditos endógenos.
Cada macaco no seu galho, cada eleição com seu regulamento, alhos num lugar, bugalhos noutro. A legislação para as eleições de 3 de outubro tem uma parte geral e uma parte específica: trata-se de lei e prevê disciplina própria para as infrações. E multa é uma possibilidade, utilizada com certa largueza pela Justiça Eleitoral, contra o presidente Lula, contra candidatos à Presidência e, mesmo, quanto a candidatos a deputado. O regulamento da eleição para o conselho municipal é outro e não prevê multa.
Quanto ao eventual afastamento do prefeito aqui da cidade, só seria cabível se ele tivesse agido da mesma forma que os vereadores, e não há indícios de que isto tenha ocorrido. Pura apelação retórica de Durão. Que também se insurge contra o acatamento de denúncia anônima. A denúncia precisa ser fundamentada, apresentar os indícios, não é um mero exercício de "achar" isto ou aquilo. Parece que fundamentada sim a denúncia, ainda que anônima, o que afasta o excesso de subjetivismo em sua apreciação.
Veleidade e estardalhaço? Bem, a pergunta de Durão tem um tom opinativo. Pessoalmente, não creio que a exposição dos fatos a estarrecidos eleitores tenha origem em veleidades. Mas concordo que há um certo estardalhaço, o mesmo que veremos quando algum a quo mudar o status quo do afastamento, pois é da tradição uma certa leniência com os acusados quando se trata de examinar afastamento de detentores de mandatos populares.
De todo o modo, sorte dos edis afastados que Durão lhes esteja a favor. Espero que o ilustre trasmontano não se abespinhe com minhas observações e passe a me atacar. Não gostaria de ter Pinto Durão atrás de mim.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá
em 27/07/2010