sábado, 21 de junho de 2008

Audiência para não ouvir

Diz Houaiss que o verbete "audiência" é um substantivo feminino, e que significa
1. ato de ouvir ou de dar atenção àquele que fala; audição
2. ato de receber alguém com o objetivo de escutar ou de atender sobre o que fala ou sobre o que alega

O que aconteceu no dia 3 de junho de 2008, terça-feira, na Câmara Municipal de Assis (SP), não foi propriamente uma audiência, ainda que esse tivesse sido o objetivo dos vereadores que a provocaram. A limitação decorrente do formato adotado em resolução da casa legislativa para as audiências em geral -- a de terça-feira, a primeira realizada na atual legislatura, foi sobre o trânsito na cidade de Assis -- impossibilitou a abordagem de pontos específicos referentes ao trânsito, fazendo com que os manifestantes se ativessem mais a generalidades do que ao exame detalhado de situações e pontos-problema no trânsito da cidade. Audiência é para ouvir, ouvir a população, diretamente. Não apenas os setores institucionais, nem a parte organizada da sociedade: ouvir a população, diretamente. Claro que com direito a manifestação dos representantes de associações de moradores e de especialistas. Mas o que se perdeu, na audiência do dia 3, foi a oportunidade de ouvir mais extensamente o que o povo tem a dizer.

Audiência é para ouvir, não para ter uma resposta pronta para cada situação apresentada. Respostas assim podem ser superficiais e, por conseqüência, há o risco de frustrar a expectativa de quem se dá ao trabalho de ir a um evento desses. O formato adotado pelas audiências institucionais das agências reguladoras, por exemplo, é o de apenas ouvir, registrar, compilar e então submeter a exame de um corpo técnico o que se recolheu, oferecendo depois uma resposta, através de publicações abragentes e públicas.

Talvez tenha sido uma impropriedade, no formato adotado, conceder um tempo bem grande para a exposição do representante da Companhia local da Polícia Militar, que exibiu interessantes estatísticas, com a intenção, declarada, de justificar sua corporação, por vezes criticada por não ser mais atuante na fiscalização do trânsito. Críticas, na maior parte das vezes, injustas, como demonstrou o militar. Mas talvez não fosse aquele o local, nem o momento, para aquela exposição.

Do pouco que se debateu, efetivamente, sobre trânsito, ficou a certeza de que é acertada a intenção da Prefeitura de contratar especialista na área, para avaliar e propor soluções para o trânsito da cidade. Essa contratação, certamente, custará dinheiro, um dinheiro bem gasto, porque as linhas gerais do trânsito não são coisa para amador. É certo que os moradores de determinado local, pelo qual passam diariamente, têm o direito de dar palpite sobe o que vivem no dia-a-dia. Têm o direito de, se for o caso, meter o dedo em riste na cara do especialista, para apontar equívocos, equívocos localizados, circunscritos ao espaço de observação do morador. No entanto, sobre as grandes diretrizes, melhor consultar especialista, porque, do contrário, acontecerá como no futebol: cada torcedor é um técnico, e é preciso ter um técnico de verdade para a coisa não virar bagunça. É evidente, entretanto, que o técnico orienta, mas quem efetivamente decide e executa é o Poder Público, o qual tem, de resto, toda e a integral responsabilidade pelas políticas adotadas para o trânsito.

Do ponto de vista político, saltaram aos olhos, na audiência, duas coisas: a primeira delas, é a de que a gestão do trânsito, em Assis, sofre forte influência do poder econômico local, ao ponto de determinar diretrizes e obras, como foi o caso dos improvisados e perigosos dispositivos instalados no final da avenida Dom Antonio. E que o diretor do Departamento de Trânsito, Leonardo Godoi Palma, tem limitada influência política e respaldo nas decisões de seu órgão. Se os poucos vereadores presentes à audiência captaram bem o que isso significa, é possível que o Legislativo local tenha condições de intervir mais fortemente no que é de sua própria seara, o mundo das decisões políticas, no segmento referente ao trânsito.

Em qualquer hipótese, a audiência pública do dia 3 de junho de 2008, na Câmara Municipal, foi um passo no sentido da democratização da gestão do trânsito em Assis, e foi realizada com seriedade, retirando a aparência de que poderia ser uma iniciativa para inglês ver. [---]

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Ceumar em estado puro

Gosto não se discute. Cada qual tem direito a seus gostos próprios, sejam eles compartilhados com grandes maiorias, restritos a minúsculas minorias, absolutamente individuais e, mesmo, idiossincrásicos. No entanto, inexiste o gosto em estado puro. De pronto, porque não é possível gostar ou deixar de gostar de algo que está fora do universo da pessoa. Não posso gostar, nem deixar de gostar, de música hitita, porque não conheço e nem sei se existiu. É muito provável que tenha existido. Todos os povos atuais conhecidos cultivam alguma forma de música, somente vocal ou com o acompanhamento, no mínimo, de instrumentos rudimentares. Posso elocubrar que os hititas, conhecidos por sua disposição para guerras, tivessem algum tipo de música marcial, com acompanhamento de instrumentos de percussão rústicos. Caso tenha sido assim, infelizmente nenhum artefato desses, fisica ou pictoricamente, chegou ao meu conhecimento.

O gosto é um produto cultural. A cultura japonesa valoriza o bonsai, árvores de considerável porte cultivadas em pequenos vasos, mediante um tipo de manejo que as torna adultas anãs, privadas da possibilidade de seu pleno desenvolvimento e saúde. Foi por isso que soou tão crível uma brincadeira que circulou na internet anos atrás, dando conta de que um japonês havia criado um gato dentro de uma garrafa, nela colocado ainda recém-nascido e dentro dela tratado, recebendo alimentação, água e cuidados de higiene várias vezes ao dia, denotando perseverança e paciência, reconhecidos atributos da cultura japonesa. Gosto não se discute, e não gosto de bonsai. Se é algo maravilhoso ver um bonsai natural, na natureza, árvores que conseguem sobreviver em cima de penhascos, de rocha quase pura, outra coisa é privar intencionalmente qualquer ser vivo inofensivo de seu pleno desenvolvimento, só para tê-lo como adorno de um jardim ou de um apartamento. Justifico o emprego da palavra "inofensivo": não tenho nenhum problema de consciência quando trucido larvas de mosquitos aedes aegypti, para não ter que caçá-los quando jovens ou adultos. É que eles são um perigo, para mim e para a comunidade.

Gosto não se discute. Disseminou-se a praga do "tchac-tchac" na música popular contemporânea, ao ponto de qualquer artista saber que, se quiser vender discos aos montes, precisará incorporar algum tipo de percussão persistente -- a tal bateria -- como acompanhamento. A bateria, que costuma ser indispensável no rock, é perfeitamente dispensável quando se trata de músicas do tipo que compõe e canta a Ceumar. Se, de um lado, é bem verdade que o acompanhamento de violões, violas, cavaquinho e outras cordas, bem como de madeiras e metais, pode, eventualmente, enriquecer uma ou outra música, de outro lado, em geral, basta o acompanhamento de um solitário violão para garantir o esplendor de uma música interpretada pela Ceumar.

A Virada Cultural Paulista brindou a cidade de Assis com vários shows e um imperdível espetáculo de dança, do Balé Stagium. mas a programação daqui não incluiu a Ceumar. Ela foi para Presidente Prudente, para apresentar-se no Teatro César Cava, na tarde do domingo. Era também imperdível e fomos para lá. Teatro lotado, Ceumar em estado puro, só ela e seu violão, suas músicas e as que fez em parceria com o baixinho Chico César, Zeca Baleiro e outros. Um amplo domínio do palco, um oposto do bonsai, a mineira de Itanhandu, delicada e gigante ao mesmo tempo, encantou e emocionou uma platéia que, de tão à vontade, cantou junto com ela várias das músicas dos três discos que Ceumar já gravou.

Voltamos um tanto extasiados. A Elka soube colocar em versos.

Curiosamente, Ceumar, por estar acompanhada só de seu violão e (à guisa de chocalho) uma pulseira de contas, pediu desculpas ao público, por não estar acompanhada de um conjunto de músicos. Gosto não se discute, mas, só para reafirmar, ainda bem que aconteceu assim, porque pudemos apreciá-la em estado puro, no melhor estilo banquinho e violão, sem nenhum incômodo "tchac-tchac".

terça-feira, 29 de abril de 2008

Padre Voador

Elevar um balão aos ares não foi a primeira façanha do Padre Voador. Seu primeiro invento foi uma bomba d'água, que levava a água do riacho Paraguaçu, em Salvador, até o Seminário de Belém, 100 metros acima. Na mesma linha, e no mesmo ano, inventou outro dispositivo, para drenar água do casco dos navios. Dispositivos funcionais, eficientes, tecnologias que foram incorporadas ao uso no dia-a-dia. Tinha 20 anos à época das invenções, o então seminarista. Só se tornaria padre no ano seguinte, integrado à Companhia de Jesus. O jesuita precisava de horizontes mais alargados e seguiu, então, para a Universidade de Coimbra, onde estudou Ciência Matemática, Ciências de Astronomia, Mecânica, Física, Química e Filologia. Seu curso de doutoramento foi na Faculdade de Cânones, da Universidade de Coimbra. Além de seus estudos de graduação e doutorado, exerceu as artes da Diplomacia e da Criptografia. Mas toda essa formação foi depois de seus principais inventos, aos quais se dedicou na época de sua formação no que seria hoje o curso colegial. Não era um aventureiro. Era um observador dos fenômenos da natureza, procurando entendê-los com rigor científico. Bem verdade que falamos da ciência da época, porque, quando fez subir aos ares seu balão, chamado por ele de Passarola, corria o ano de 1709.

Foi só na terceira tentativa que subiu aos ares a sua Passarola, um sucesso aboluto: o primeiro engenho mais-leve-que-o-ar, 74 anos antes dos irmãos Montgolfier voarem em um balão de ar quente, o que fizeram em 1783, quando a tecnologia disponível colocava o risco numa faixa aceitável. Se Santos Dumont é para nós, brasileiros, o pai da aviação -- em segredo, sem testemunho de terceiros e com ajuda de uma catapulta, os irmãos Orville e Wilbur Wright teriam voado num mais-pesado-que-o-ar três anos antes de Dumont, cujo vôo foi em público e numa máquina que elevou-se aos ares por seus próprios recursos --, não fica nenhuma dúvida na história mundial que o pai da aerostação é Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nascido em dezembro de 1685, na então Vila de Santos, em São Paulo.

Morreu novo, o padre Bartolomeu, aos 39 anos, numa cama do Hospital da Misericórdia de Toledo, na Espanha, onde havia se refugiado, para evitar a perseguição que, em Portugal, poder-lhe-ia mover a Inquisição (tinha sido denunciado a ela por heresia). Cento e oitenta anos depois de sua morte, seu corpo foi trasladado para o Brasil, em 2004, e está atualmente na cripta da Catedral da Sé, em São Paulo.

Tais considerações são a propósito de um outro "Padre Voador", que, também novo, aos 43 anos de idade, está desaparecido, ao tentar um desastrado vôo num mais-leve-que-o-ar, sem munir-se dos conhecimentos necessários à empreitada. Foi chocante ouvir sua própria voz, ao telefone, já com problemas no vôo, pedindo aos bombeiros de Guaratuba (PR) que alguém o ensinasse a operar o aparelho de GPS que havia levado.

Há risco em toda a atividade humana. Alguns são aceitáveis, e outros, definitivamente não. Dentre estes últimos, estão os riscos associados à imprudência.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Ontem nasceram crianças

31/3/2008
Ontem nasceram crianças, e a Humanidade enriqueceu-se. Mas também empobreceu-se com a morte de Dith Pran (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft3103200803.htm, para assinantes), um cambojano comum que um dia ganhou uma máquina fotográfica e abriu seus olhos, e os do mundo, para o genocídio do qual foi vítima o seu pequeno país. Testemunhou cinco anos de massacres que reduziram em quase um terço a população do Camboja, sob o regime de Pol Pot -- um daqueles ditadores que morreram na cama, de consciência tranqüila. O Khmer Vermelho de Pot levou às conseqüencias sanguinárias e nefastas o pensamento de Mao Tse Tung, de que a integral implantação do socialismo, rumo ao utópico comunismo, necessitaria de forte intervenção cultural, para apagar da memória coletiva a influência capitalista ocidental. Nada apaga mais definitivamente do que a morte: algo em torno de dois milhões de mortos, em cinco anos (1975 a 1979), num país que tinha pouco mais de seis milhões de habitantes. Antes disso, vítima da guerra fria (e quente, no Vietnã), o Camboja recebeu uma carga de bombas estimada em 2,76 milhões de toneladas, lançadas principalmente pelo governo Nixon (sem autorização nem conhecimento do Congresso estadunidense). Vale lembrar que, durante toda a II Guerra Mundial, os Estados Unidos lançaram (incluindo as duas bombas atômicas) pouco mais de 2 milhões de toneladas de bombas. "O Camboja terá sido o país mais bombardeado em toda a história", diz o Le Monde Diplomatique (http://diplo.uol.com.br/2008-01,a2153, para assinantes). Nixon foi apeado do poder por bisbilhotar a vida (e a saúde mental) de seus opositores democratas, condenado a leve sanção e perdoado por Ford. Não lhe pesaram as mortes cambojanas, pelas quais foi direta e indiretamente co-responsável.

Ontem nasceram crianças, e a Humanidade enriqueceu-se. O que será delas no futuro próximo dependerá em muito de cada um de nós. Poderão se tornar um Pot, um Nixon ou um Dith Pran. Quiçá, ao morrerem, longevas, façam a Humanidade sentir-se empobrecida, como Pran.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Consciência tranqüila

Suharto, alimente seu povo


Morreu, na Indonésia, na cama, é de se imaginar que com a consciência tranqüila, o ditador Suharto. De morte natural, de velhice, sem jamais ter sido julgado por seus crimes contra a Humanidade. Estimativas conservadoras dizem que sua política de anexação do Timor Leste causou a morte de um quarto dos habitantes do pequeno país, quando do colapso da longa ocupação colonial portuguesa daquela metade de uma ilha. Outras estimativas falam em 200 mil pessoas - cerca de um terço da população de Timor Leste - que morreram na ocupação, ou foram vítimas da fome que atingiu o país (hoje, 27/01/2008 BBC Brasil, http://noticias.uol.com.br/bbc/reporter/2008/01/27/ult4909u2106.jhtm, para assinantes UOL). Mas não matou apenas no Timor: matou, e muito, na sua própria Indonésia, desde que assumiu o poder, em 1965, com irrestrito apoio do império estadunidense. Primeiro foram os comunistas e simpatizantes, e depois, pessoas comuns, nas províncias de Papua e Aceh. O Timor foi vítima em 1975, na mesma semana da visita do presidente dos EUA e de seu fiel escudeiro, Kissinger, à Indonésia.

O crescimento econômico, medido em PIB, experimentado pela Indonésia durante parte de seus 32 anos de regime ditatorial e violento, não foi sentido pela maioria do povo indonésio. Concentração econômica, corrupção e fome levaram o exausto povo à revolta, em 1998, quando uma crise econômica em toda a Ásia mostrava a fragilidade de modelos de crescimento "milagrosos". Na época, nos jornais e na televisão, era comum ver os cartazes rabiscados toscamente, com a frase (traduzida) "Suharto, alimente seu povo". As últimas fotos do ditador não deixam dúvidas: morreu gordo. Bem diferente, fisicamente, dos habitantes de Aceh, devastada por tsunami dois anos atrás. Os sobreviventes do desastre natural, mostrados à farta na televisão, exibiam corpos esbeltos, bem magros, porque a pequena província nunca se recuperou do ódio a ela devotado pelo ditador.

Junta-se, Suharto, dentre muitos outros, a Pol Pot e a Pinochet, que também morreram na cama, muito, mas muito mesmo, provavelmente, de consciência tranqüila. É algo a ser levado em conta, quando alguém diz que está com a consciência tranqüila.