Foi sábado, aqui no pé do Morro do Funhanhado, onde moro. Saperê: não, não se trata daquela cana imprestável que nem para garapa serve. Já era noitinha e o gambá que mora no forro de casa já tinha saído para buscar sua comida na beirada do corguinho que passa aqui nos fundos. Quem me avisou do gambá foi a Toca, minha gorducha e simpática vira-latinha. E foi então que, olhando melhor para a cerca viva que separa o quintal do corguinho, vi um Saci-Saperê bem pequenininho, mirim mesmo. Deve ter nascido há poucos dias, talvez durante aquelas chuvaradas da semana retrasada, do colmo de algum taquaruçu de alguma das moitas que ainda existem nas bordas da Mata Atlântica. O danadinho soltava umas grossas baforadas do seu cachimbo, acho que para espantar os pernilongos, que estão numa abundância incômoda aqui no Perequê-Mirim. Mas, claro, são apenas os culex, que só enchem o saco, mas não transmitem a denque. Os aedes, felizmente, não estão dando as caras nas minhas imediações. Claro que cuido do meu quintal, com a ajuda do meu fiel vizinho caiçara, o Osvaldinho. Aqui não tem água parada.
Minha primeira reação foi chamar a Marlene. Tenho muita intimidade com minha esposa, companheira de década, mas, honestamente, nunca perguntei, e ela nunca falou, se viu algum Saci. E, honestamente, não sei qual seria a reação dela ao ver aquele Saperê-Mirim bem no nosso quintal. Além do mais, recebíamos visitas, dois amigos, para uma cerimônia íntima. Resolvi ficar quieto, mesmo porquê fiquei tão surpreso naquele momento que senti uma certa paralisia, um encantamento difícil de explicar. O danadinho afastou a ponta da carapuça vermelha, que lhe entrecobria um dos olhos, para melhor me observar. A cadelinha Toca (que ganhou esse nome porque nasceu na Cachoeira da Toca, em Ilhabela, quatro anos atrás, por ocasião de umas férias na praia de Paúba, em São Sebastião), entretida com a visão (e o cheiro, certamente) do gambá, nem se deu conta da presença do Saci. Trocamos um rápido e direto olhar, o Saci, curioso e eu, paralisado, quase hipnotizado, encantado. Mas estávamos em uma cerimônia íntima e ninguém convidara o Saci. E, de qualquer forma, não se fica chamando Saci para a mesa, quando presente uma botelha de consertada.
Explico. A botelha de consertada foi presente do Julinho, porque era bebida indispensável à íntima cerimônia de batismo, que se concretizaria só entre os varões, como manda a tradição. Fazer consertada é atribuição das mulheres, porque, conforme me explicou o Luiz Roberto, elas "consertavam", reparavam, a bebida, que tem um certo sabor e aspecto de quentão frio, tornando-a mais alcoólica ou mais doce conforme o evento, para que elas, mulheres, pudessem tomá-la para melhorar o astral. A homarada toma chachaça a seco mesmo, coisa intragável para o delicado paladar feminino. Mas, em cerimônia de batismo, em homenagem às mulheres que não poderão estar presentes, usa-se a consertada e tomá-la cabe apenas aos homens. O Luiz Roberto tinha explicado que o batismo só se completaria com três ritualísticas goladas em rápida sequência, que sorvi embevecido.
Mas voltemos ao Saci. Ele não estava a fazer nenhuma molecagem, não. Tenho a impressão de que estava curioso, apenas isso. Ou, quem sabe, imaginando qual traquinagem, qual pequena maldade, poderia fazer. Não sei ao certo. Mas o fato é que choveu coquinho três noites seguidas, atrapalhando o sono, como se alguém, ao fazer um estridente assovio, balançasse a touceira de coqueiros na frente de casa, com seus cachos de coquinhos maduros sobre o telhado que cobre sala e corredor. Recolhi um saco de coquinhos, daqueles sacos grandes de ração da Jade, minha velha, doente, muito doente, cachorra pastor-alemã. Está tão debilitada minha melhor amiga que, tenho toda a certeza, o Saci não vai bulir com ela. É certo que o danadinho faz toda a sorte de pequenas maldades, dá nó em crina de cavalo, esconde coisas, mas no fim é de boa índole, tem alma, sentimentos.
Tive vontade de falar do Saci à Ligia, minha filha, que, junto com o Felipe, seu namorado, estava em casa. Mas Ligia, tenho certeza, nunca viu Saci. Felipe, menos ainda, é paulistano urbano. Se a Elka, minha outra filha, estivesse aqui, ficaria muito à vontade de falar do Saci a ela, que estuda em Botucatu, terra oficial do Saci-Pererê. Também ficaria muito à vontade para falar dele ao Juliano e à Tatiana, meus filhos que moram em Araraquara, onde abundam Sacis caipiras. É bom citar que os dois são jacus, pois nasceram em Jales, onde também há Sacis.
Tive vontade de falar do Saci ao Julinho, que, com toda a certeza, já viu um. O Grupo Folclórico e Alegórico O Guaruçá tem até um boneco do dito cujo em tamanho real. Vi Sacis aqui em O Guaruçá. O Moura, Luiz Roberto, não sei se já viu. Ele é meio sério, meio cético, mas, afinal, também sou assim e já vi, e não tenho receio de dizer isso. Só que o ambiente era outro, cerimonial. Tratava-se de um batismo.
Sábado passado fui batizado Elciobebe, na Tribo dos Bebe, cujo patrono é Cunhambebe, aliado e protetor de Coaquira, destas terras. Meus padrinhos cerimoniais foram o Julinho Mendes e o Luiz Roberto de Moura, a quem, finalmente, pude conhecer pessoalmente por bem mais do que cinco minutos. Foram momentos agradabilíssimos. Agradeço-os pela visita, pela cerimônia, e peço-lhes as bençãos para que acreditem que vi mesmo um Saci-Saperê, mesmo que não tenha mencionado no momento. Não tenho como provar. A Marlene é fotógrafa, mas, quanto ao batizado, não podia estar presente e, quanto ao Saci, tive dúvidas se ela enfrentaria o danadinho. Ela é de enfrentar, sim, aranhas e teiús - e só agora me ocorre por que o teiú vinha se esconder numas pedras do quintal: por causa do Saci -, mas Marlene também enfrenta montanhas, patos e abelhas que não baforam, nem assoviam, nem fazem traquinagens.
Saci-Saperê, só para concluir, é o mesmo Saci-Pererê. É o Saci-perereg (do Tupi-Guarani Çaa Cy - olho mau; perereg - saltitante), do depoimento de M. L. de Oliveira Filho citado por Monteiro Lobato em seu (grafia original) "O Sacy-Perêrê - Resultado de um Inquérito", publicado em 1918. Usei a forma Saperê porque, nas palavras de Lobato, citando o depoimento de Procópio Silvestre, "No litoral é comumente chamado de Saci-saperê (pág 317)". Procópio acrescenta: "Os sacis do litoral apesar de travessos são bondosos, bem comportados, e alguns religiosos até."
- Texto originalmente publicado em O Guaruçá e, posteriormente, no site da Sosaci.
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