sábado, 9 de outubro de 2010

Ninguém teve voto em Ubatuba


Ninguém, do PSL, teve um único voto em Ubatuba. Ele totalizou 787 votos nesta eleição. É engenheiro, tem um patrimônio de pouco mais de 8 mil reais. Seu nome é Silvio Luiz Martuci, mas optou por colocar, na urna eletrônica, "Ninguém". E a Justiça Eleitoral deferiu.
Luiz Moura não teve nenhum voto em Ubatuba, mas figura entre os eleitos, pela coligação Somos Mais São Paulo, liderada pelo PT. Seu patrimônio ascende a R$ 5.125.587,92, dos quais 4 milhões referem-se a uma empresa de turismo, a Happy Play Tour. É alagoano, de Batalha, o cabra da peste.
Guerra teve, em todo o Estado, 30 votos. Ele é do PTN, ator e diretor de espetáculos públicos. Lê e escreve. Em Ubatuba, nenhum voto. A foto na urna é bem interessante.
O Elcio, em todo o Estado, teve 19.585 votos. Mas como foi pego na malha da Lei da Ficha Limpa, se teve algum voto em Ubatuba ainda não vai ser agora que isso será conhecido. Só mesmo depois que o TSE julgar o tema. É do PPS.
Julhinho - isto mesmo, maio, junho, Julhinho -, em Ubatuba, zero, nenhum voto. No Estado, teve 851 votos. É do PRP.
Julinho foi mais esperto: renunciou à candidatura. Com patrimônio de 150 mil, o advogado integra os quadros do PMDB.
Grilo, o da lotação, teve 397 no somatório estadual, e zero, neca de pitibiribas, em Ubatuba. Adenisio Miguel da Silva, PSC, é um pernambucano de Glória de Goitá, cujos bens somam 300 mil reais, dos quais 120 mil referem-se ao seu micro-ônibus ano 2004. De onde tirou o apelido de Grilo para a urna só se pode fazer suposições.
Quociente Eleitoral
Bem, esta foi a parte (que pretendi ser) divertida. Agora vamos à parte chata: entender melhor essa coisa de eleição proporcional, na qual nem sempre quem tem mais votos leva.
Na eleição chamada de majoritária, para presidente, senador, governador, prefeito, é bem simples: quem tiver maior número de votos, leva, é eleito (às vezes, conforme o caso, em segundo turno). O cargo em disputa tem apenas uma e única vaga, mesmo quando se trata do caso de senador, porque é um número fixo de representantes por Estado: três. O Amapá tem direito a três senadores, um dos quais é, hoje, o presidente do Senado, o ex-presidente José Sarney, do Maranhão. Ué. Pode? Pode. É uma esperteza, e seria uma fraude se não fosse algo permitido pela legislação eleitoral. Bastou que ele mudasse seu domicílio eleitoral para Macapá, mesmo continuando a morar (quando não está em Brasília) em São Luís. Simples assim. São Paulo também tem direito a três senadores. O argumento dos defensores do sistema bicameral sustenta que o Senado representa o Estado federado em si, enquanto que a Câmara dos Deputados representa o povo de cada Estado. Seria maravilhoso, se o Amapá, Roraima e Rondônia, por exemplo, fossem Estados de verdade, e não as ficções, os arremedos, que são hoje, praticamente mantidos com recursos federais.
Vamos agora examinar o caso da Câmara dos Deputados, mas a regra vale para as Assembleias Legislativas e para as Câmaras Municipais.
A Câmara dos Deputados tem um máximo de 513 cadeiras, número definido proporcionalmente à população, dados fornecidos pelo IBGE. A regra legal diz que nenhum Estado poderá ter menos de 8 cadeiras, e não mais de 70. Dos 27 Estados da Federação, apenas São Paulo fica limitado ao máximo de 70 vagas. Minas tem 53, o Rio de Janeiro 46, a Bahia 39. São os mais populosos. Onze Estados têm população pequena e se beneficiam da regra do mínimo de 8 vagas cada.
A proporcionalidade ocorre com o uso do quociente eleitoral (QE), que é a divisão dos votos válidos (votos em candidatos e nas legendas) pelo número de vagas de cada Estado. Foi introduzido pelo código eleitoral de 1932 e é o número mínimo de votos que precisa ter um partido ou coligação para ter representante na casa legislativa. Subsidiariamente, há a regra das maiores médias.
Assim, o QE de São Paulo, na eleição de 3 de outubro, foi de (21 317 327 / 70 =) 304 533 votos. O candidato eleito para a vaga 70, Salvador Zimbaldi, do PDT, precisou de 42.743 votos. O primeiro suplente da coligação liderada pelo PSDB, Wanderlei Macris, teve 111.531 votos.
O QE, por exemplo, de Roraima, foi de (21 317 327 / 8 =) 2 664 665 votos. Roraima não tem esse número de pessoas, que dirá de eleitores. O candidato eleito para a vaga 8, Chico das Verduras, da coligação liderada pelo PRB, precisou de apenas 5.903 votos, enquanto que o primeiro não-eleito, suplente, portanto, Urzeni Rocha, da coligação liderada pelo PSDB, teve realmente votação menor, 4.555.
Por que essas diferenças? O voto de São Paulo vale menos? Por que, aqui, o candidato que menos votos precisou, para ser eleito, teve que conseguir quase 43 mil, enquanto que o de Roraima precisou de apenas quase 6 mil? Por que o primeiro suplente paulista não foi eleito, apesar de seus mais de 111 mil votos? Que mágica é essa?
Não há mágica. Há um sistema, consagrado desde 1932, que não é perfeito, é alvo de várias críticas e que, nitidamente, beneficia os Estados menos populosos. Seus defensores dizem que esse é o preço a pagar para ter, e manter, uma república organizada sob a forma de uma federação de Estados-membros, sem que o maior sufoque o menor. Há vários outros sistemas eleitorais proporcionais em uso no mundo, todos com suas vantagens e todos também com suas desvantagens. Esses sistemas são obras humanas e jamais serão perfeitos.
O sistema em uso no Brasil usa dois critérios, o do Quociente Eleitoral, e o das maiores médias. Examinar um caso concreto poderá facilitar o entendimento desses critérios. Por que o vereador Maurão decidiu ser candidato a deputado federal? Teria a ilusão de conseguir se eleger, com votos de um colégio eleitoral tão pequeno como o de Ubatuba, que teve pouco mais de 39 mil votos válidos? Tem-se como certo que não. O raciocínio é de outra ordem, que leva em consideração o interesse partidário. Maurão teve muito mais sucesso pedindo votos para si próprio do que teria pedindo votos para algum outro candidato de seu partido. Conseguiu 3.573 votos em Ubatuba, e outros 1.946 em outros municípios, uma votação nada desprezível, e que o consolida como liderança regional no PSC, além de colocá-lo como 12º suplente.
Com isso, contribuiu para eleger os dois representantes da coligação na Câmara dos Deputados. Vejamos: o candidato mais votado da coligação, Marco Feliciano, teve 211.855 votos, bem menos que o quociente eleitoral. O segundo mais votado, Marcelo Aguiar, teve 98.842, muito menos que o quociente eleitoral, que é de 304.533. No entanto, a coligação teve 650.202 votos dados ao conjunto de seus candidatos, mais 9.489 votos dados às legendas, resultando num total de 668.691 votos. Ou seja, mais de duas vezes o quociente eleitoral (668 691 / 304 533 = 2.19579159), garantindo assim duas vagas e mais uma pequena sobra.
Essa sobra permite à coligação participar da segunda rodada da eleição proporcional, que é o método das maiores médias. Funciona assim: preenchidas as vagas pelo método do quociente eleitoral, poderão restar mais vagas, decorrentes das sobras de todos os partidos/coligações, bem como daqueles que não tenham alcançado o quociente (e que ficarão sem nenhum representante). A média da coligação Humanista-Cristão para disputar uma terceira vaga será de (668 691 / 3 =) 222.897. Ou seja, um deputado para cada 222.897 eleitores.
Para comparação, tomemos o caso da coligação Juntos por São Paulo, cujos dois principais partidos são o PT e o PR. O PR, na verdade, é um partido inexpressivo, feudo do deputado Valdemar da Costa Neto. Mas abrigou, nesta eleição, o candidato Tiririca, que teve 1.353.820 votos. No conjunto, a coligação teve um total de 6.789.330 de votos válidos. Aplicando o método do QE, fica fácil perceber que teria direito a 22 vagas: 6 789 330 / 304 533 = 22,2942341, com uma sobra relativamente alta, quase um terço de uma vaga. Para disputar uma terceira vaga sua média será (6 789 330 / 23 =) 295 188,261. Ou seja, um deputado para cada 295.188 eleitores. Bem maior, portanto, que a da coligação do vereador Maurão, que é de um deputado para cada 222.897 eleitores.
Mas a coligação do Tiririca, mesmo garantindo uma 23ª vaga, ainda tinha uma sobra significativa, garantindo nova média elevada: (6 789 330 / 24 =) 282 888. Resultado: conquistou uma 24ª vaga. Mas seu gás acabou por aí. A média para a 25ª vaga seria 6 789 330 / 25 = 271 573, ainda elevada, mas mesmo assim menor do que a de outras coligações em disputa. Essa perda de sobras significa candidatos com muitos votos, mas não eleitos. Por causa disso é que há candidatos suplentes com mais votos que candidatos de outras coligações, eleitos. Então, individualmente, Tiririca elegeu-se a si próprio e a mais três candidatos de sua coligação, mas a coligação em si só ganhou duas vagas pelo método das maiores médias. As demais coligações, pela ordem do QE obtido e das sobras, ficaram com as vagas remanescentes, com médias sempre maiores que as da coligação do Maurão, a qual ficou só com suas duas legítimas vagas de QE e mais uma pequena perda.
É justamente por causa desse critério de redistribuição de vagas pelas sobras, do qual se aproveitam todas as coligações e partidos, mas principalmente os maiores, que acontecem casos como o de suplentes, geralmente das grandes coligações, terem mais votos do que os últimos dos eleitos, geralmente das coligações menores. Ter muitos votos é muito bom, ter sobras altas também é bom, porque resulta em mais cadeiras para a coligação, mas acaba deixando sobras ainda altas, ou seja, candidatos não eleitos apesar de mais votados que eleitos de coligações menores. Considerando que o mais forte não deve sufocar o mais fraco, a solução não é de todo ruim. E, como, de uma forma ou de outra, o sistema acaba beneficiando a todos (exceto os partidos realmente nanicos), ninguém, nem o Niguém, se interessa muito em mudar isso.
Só para constar, Tiririca garantiu a eleição dos candidatos Delegado Protógenes, do PC do B, que teve 94.906 votos, e de Vanderlei Siraque, PT, 93.314. E ainda colocou José Genoino, PT, como primeiro suplente.
Só para constar, o segundo suplente da coligação Humanista-Cristão é Ney Santos, 40.321 votos, e que a polícia paulista suspeita ser representante de uma facção do crime organizado. Quatro anos depois de sair da cadeia passou a ser proprietário ou sócio de 18 postos de combustíveis e, em recente operação policial, teve apreendido um carro Ferrari.
Só para constar, Tiririca tem seu mandato ameaçado, por conta de duas ações propostas pelo Ministério Público, uma das quais pelo fundamento de que uma das causas de inelegibilidade é o analfabetismo. Protógenes é o ex-delegado da Polícia Federal que investigou alguns figurões, entre os quais Daniel Dantas, banqueiro que, na esteira da festa da privatização da telefonia, viu aumentar significativamente seu patrimônio e que chegou a ser preso, na Operação Satiagraha, que apurava irregularidades em operações financeiras de grande vulto. Genoino, que tem uma história de combate à ditadura instaurada em 1964, sabe ler e escrever, e assinou, sem ler, como presidente do PT à época, contrato que se transformou numa das peças do processo judicial que apura o caso do Mensalão.
Só para concluir, boa parte desse quadro de eleitos pode mudar, porque o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre a situação dos candidatos cujos votos são, no momento, considerados como nulos, em face do indeferimento de suas candidaturas com fundamento na Lei da Ficha Limpa. Se o STF julgar que os votos atribuídos a esses candidatos são nulos, fica tudo como está. Se julgar que são válidos, então novas contas do QE e das maiores médias precisarão ser feitas, podendo resultar em mudanças significativas.

- Texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá , em 08/10/2010
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