domingo, 17 de outubro de 2010

Oportunidades de melhoria na votação em Ubatuba


Foi bem a votação em Ubatuba, exceto algumas pequenas picuinhas. Mas que talvez apontem para alguma oportunidade de melhoria.
A Justiça Eleitoral não é um ente etéreo, que opera fora dos padrões humanos. É constituída por pessoas, uma multidão de pessoas, desde seus colaboradores cidadãos comuns, a quem cabe trabalhar na preparação do espaço de votação, na organização das filas e acesso às seções eleitorais, nas mesas receptoras de votos, nas apurações (com a urna eletrônica, fica obsoleto falar em mesas apuradoras), até aqueles a quem, por dever de ofício, cabe fazer os registros eleitorais, expedir e fazer cumprir instruções convenientes à execução do Código Eleitoral, e, até, exercer uma espécie de "poder de polícia", de natureza eminentemente administrativa. Como boa parte, senão a maior parte, dessas atribuições não tem a ver com jurisdição contenciosa, é comum os juristas falarem em jurisdição voluntária, lembrando sempre que há países que adotam sistemas de comissões eleitorais, das quais não participa o aparato judiciário, reservado este exclusivamente ao conteúdo contencioso das eleições.
O juiz eleitoral, nas eleições, especialmente nos dias de votação, exerce atividades administrativas, com ritos e procedimentos nem sempre iguais aos das lides contenciosas. Não deve ser inerte, não precisa ser provocado, mas deve decidir de pronto, quando o é. Há julgados do TSE no sentido de que, por conta de sua função híbrida de juiz eleitoral, quando este atua como administrador, e sofre desobediência quando exerce poder de polícia, pode ficar impedido de atuar, no caso concreto, como órgão jurisdicional.
Por extensão, promotor, cartorário, diretor da escola, o encarregado de destrancar o portão, são funcionários que mantêm seus títulos, mas que, nos dias de votação, exercem atividades que auxiliam o juiz eleitoral em sua missão administrativa. Ou, mesmo, agem apenas como cidadãos, no interesse do melhor desenrolar da atividade de votação.
Não é prudente generalizar a partir do meu pequeno bairro pobre. Mas o que vi, de uma maneira menos intensa que a descrita por Rui Grilo, foi semelhante. O espaço para votação, na escola onde funcionou a Seção Eleitoral em que votei, estava bem organizado, mas mal sinalizado. E o bocado de gente que tentava ajudar os eleitores não portava qualquer crachá, identificação ou coisa assim. Quando fui à procura da representante da Justiça Eleitoral, a melhor referência que obtive foi "aquela moça morena, do Cartório Eleitoral, de blusa branca". Encontrei-a, afinal, e relatei sobre a propaganda desrespeitosa, pedindo para que constasse da ata. Não sei quanto à ata, mas Léia, a moça da blusa branca, solícita e decidida, tomou um bocado de chuva e resolveu a questão.
O relato do fiscal de partido, sobre a votação na seção eleitoral onde atuou, mostra algo mais contundente, e o relato do promotor diz que Grilo, ao apontar tumulto, "somente estava querendo causar tumulto". Grilo apontou falha de procedimento - fiscal impedido de entrar para registro da "zerésima" - e tumulto nas filas, pessoas sem identificação, coisas fáceis de resolver. Foi denunciado ao promotor por boca de urna - não constatada -, o que leva a supor uma espécie de maldosa retaliação. O dr. promotor eleitoral registrou, em nota, as duas faces do episódio. Mas foi além, talvez até muito: "De todo modo, caso alguém tenha presenciado boca de urna, ou qualquer outra irregularidade, por gentileza, que apresente à Justiça Eleitoral a devida representação por escrito e acompanhada de nomes, lugar, testemunhas e um início de elementos probatórios a permitir que uma investigação possa ser realizada e os responsáveis punidos. Não basta "denuncismo" por "denuncismo" ou "achismo", tal como ocorrido no episódio do Sr. Rui Grilo, mas sim informações concretas e que permitam efetivamente a punição dos responsáveis. Além disso, a representação deve ser redigida em documento assinado a fim de que a pessoa que apresentar a notícia assuma também a responsabilidade pelos fatos que levar a conhecimento da Justiça, coibindo assim qualquer tentativa de usar a Justiça para fins estritamente eleitoreiros e eventual prática de denunciação caluniosa, o que, infelizmente, por vezes ocorre."
Bem, o cidadão comum tem horror a se envolver em episódios policiais ou judiciários. Na verdade, evita até mesmo reclamar no supermercado, quando vê algum produto mal embalado ou com data de validade vencida. Ao estacionar seu carro em via pública, sofre calado a extorsão praticada por "flanelinhas" oportunistas, não vinculados a qualquer entidade. Sofre na pele, mas apenas vagamente sabe o que é assédio moral, algo que por vezes relata para seu amigo, mas jamais chega ao ponto de denunciar, especialmente se for funcionário público de cidadezinha ou empregado de terceirizada. O cidadão sabe que, se resolver reclamar, caber-lhe-á imenso ônus, que se sente despreparado para assumir. Que verá muitas caras feias e pouco auxílio de onde quer esperar defesa da cidadania. Não é diferente quando se trata de eleições. E a própria propaganda do TSE diz isso, na animação em que, assediado pelo bando da boca de urna, o eleitor simplesmente pega a colinha eleitoral que lhe foi imposta e, a seguir, a joga no lixo, seguindo sorridente para a urna. A propaganda institucional não o mostra redigindo extensa petição nem, ao menos, pegando um telefone para denunciar. Não: a mensagem subjacente é "não confronte, não reclame, apenas jogue no lixo".
Então, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Na efervescência do processo de votação, os administradores são chamados para intervir exercendo poder de polícia, e não, portanto, sujeitos aos ritos judiciários contenciosos. Daqui a pouco, os mais afoitos estarão a exigir capacidade postulatória para resolver questões meramente organizacionais, administrativas.
Do visto, parece claro que o fiscal de partido Grilo, talvez até fazendo jus ao apelido do inseto que lhe empresta o nome de família, "cri-cri", falava da possibilidade de atos atentatórios à liberdade do voto, durante o processo de votação. Possibilidade a justificar atuação dos administradores do processo, e não evento contencioso, a nascer na esfera jurisdicional e penal, a partir de testemunhas e um início de elementos probatórios, como quer o promotor eleitoral. Há que reconhecer o mérito dos que se batem pela cidadania.
Andou bem o promotor eleitoral de Ubatuba ao evidenciar, em sua nota, os excessos do fiscal Grilo. Andaria melhor ainda se também reconhecesse que faltou, ao local da votação, melhor organização para prover informações de melhor qualidade ao eleitor, bem como reconhecer que, mesmo presumivelmente não causando prejuízo a ninguém, ritos do processo eleitoral - norma não contém palavras inúteis - devem ser observados e eventuais desvios corrigidos, preventivamente, na esfera administrativa de que se trata.
Por final, oportunidade de melhoria é linguagem da Ciência da Administração, e, convenhamos, um eufemismo que os adeptos da Qualidade Total usam para escamotear erros, defeitos e problemas, coisas de gente, de humanos, de pessoas. Mas, admitindo válida a otimista expressão, a tal Qualidade Total vê no equívoco, no erro, na falha, na falta, no mais leve escorregão, uma oportunidade de melhoria. É linguajar da ciência da administração, mas pode, com cuidado, ser aplicado ao processo eleitoral: a administração do processo eleitoral, com especial ênfase para os procedimentos do dia das eleições, talvez tenha a ganhar se a Justiça Eleitoral e seus colaboradores, Ministério Público Eleitoral incluso, tiverem a humildade de admitir alguma possibilidade de melhoria, oportunidade eventualmente apontada na efervescência dos ânimos exaltados no dia de votação.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá, em 15/10/2010

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