Recebemos esta semana, eu e a Marlene, aqui no nosso cantinho no pé do Funhanhado, o artista Thiago Vaz (thiagovaz.com.br), cujo heterônimo Iderê Dudu da Silva (algo como Madeira Escura da Floresta), hora nascituro no mundo artístico, é o autor do É o Saci (Urbano). Esteve acompanhado da dulcíssima Vanessa, para um almoço e uma conversa com o Julinho Mendes e com o editor desta revista, Luiz Roberto de Moura. A comida ficou por conta do mestre-cuca caiçara Julinho, que nos presenteou com um magnífico Azul Marinho, acompanhado de pirão, arroz e salada. Claro que demos nossa contribuição, disponibilizando o fogão e uma faca de cozinha com corte apenas razoável. Até a panela o Julinho trouxe. Sua generosidade foi ao ponto de ensinar à Marlene, passo a passo, como preparar a iguaria caiçara, da qual o Luiz Roberto explicou a origem: caiçara sabe que dá trabalho plantar mandioca (bem entendido, a planta com sua raiz comestível) e depois ralá-la e passar pela pedra de mó para virar farinha. Por conta disso, usa a banana verde, que dá às pencas nas antigas terras de Coaquira. E em contato com a panela de ferro, a banana verde fica com o tom azulado que dá nome ao prato.
Iderê sabe que a parte física de sua obra sofre de atroz efemeridade: se o proprietário do imóvel cujo muro foi presenteado com a obra de arte não a compreende, xingando-a de pichação, mandará pintar uma mortalha branca por cima. É também como as prefeituras costumam agir. Se a compreende ou, mesmo, se apenas gosta dela, permitirá sua exposição à radiação solar, à nociva radiação ultravioleta que esmaece qualquer tinta, à chuva que carrega poluentes, ao ar poluído (especialmente o de São Paulo). A obra física é efêmera, mas a ideia, o brilho da criatividade, é perene. Esse é o Saci Urbano, "É o Saci", a assinatura tímida de Iderê.
Em conversa de artistas não se mete a colher. Puderam conversar um pouco, Thiago e Julinho, e quem sabe não armam alguma coisa para o fim de outubro deste ano, aqui em Ubatuba? O futuro só o futuro revelará, mas nossa torcida é para que, em meio às chuvas de outono, nasça de algum colmo de bambu algum belo Saci caiçara, que se integre à paisagem urbana de nossa linguiça espremida entre o mar e a serra, a nossa Ubatuba.
Expusemos intimidades. Confirmamos: de perto, ninguém é normal. Mas ficou a certeza de que Iderê tem uma genialidade que talvez não alcancemos, nem nós nem ele, em profundidade, e que, queira ele ou não, compreenda ele ou não, se expressa através do Saci Urbano. De mim, confirmando suspeitas recentes, fica a certeza de que, dito de maneira muito doce, calou fundo a possibilidade de que eu esteja mesmo numa fase pré-Alzheimer, merecedora de cuidados. Além, claro, de minha rigidez racional constitucionalmente arraigada (o erro de Descartes, já denunciado em livro da obra do neurologista português António Damásio, que não por acaso minha filha Tatiana me deu de presente). O que não me impede, é claro, de ver os Sacis que rondam nosso cantinho no pé do Funhanhado.
Adendo
Um adendo. Talvez uma origem remota do Saci esteja no folclore asturiano, diz o site de etimologia Origem da Palavra, que não revela nomes de seus autores: trata-se do Trasgo. Baixinho, moreno, mancava da perna direita, vestia-se de vermelho e usava um gorro pontudo da mesma cor, diz o site: "Hoje vamos começar por um ser que visitava as casas de nossos antepassados do Norte de Portugal, o trasgo. Este era o equivalente aos gnomos e duendes de outras culturas. Seu nome era trasgu na mitologia asturiana.
Ele era baixinho, moreno, mancava da perna direita e tinha um furo na palma da mão esquerda. Vestia-se de vermelho e usava um gorro pontudo da mesma cor. Não era difícil reconhecê-lo, portanto.
Não façam essas caras de medo, ele não era dos piores. Ele era o responsável pelos barulhos que uma casa faz à noite e às vezes ficava travesso e quebrava alguma louça. De minha parte, acho que mais de um prato foi quebrado pelas crianças da casa e ele acabou levando a culpa.
No fundo ele era bonzinho, pois até fazia serviços domésticos quando se sentia bem tratado."
Alguma semelhança com o Saci-Saperê que descrevi em março de 2010? "Saci-Saperê, só para concluir, é o mesmo Saci-Pererê. É o Saci-perereg (do Tupi-Guarani Çaa Cy - olho mau; perereg - saltitante), do depoimento de M. L. de Oliveira Filho citado por Monteiro Lobato em seu (grafia original) "O Sacy-Perêrê - Resultado de um Inquérito", publicado em 1918. Usei a forma Saperê porque, nas palavras de Lobato, citando o depoimento de Procópio Silvestre, "No litoral é comumente chamado de Saci-saperê (pág 317)". Procópio acrescenta: "Os sacis do litoral apesar de travessos são bondosos, bem comportados, e alguns religiosos até."
Há sempre uma advertência necessária, quando se trata de Dudu. Jamais, leitor que conseguiu chegar ao fim do quilométrico texto, confunda o Dudu nome do meio do Iderê com um certo político local que infelicitou esta cidade.
- texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá, em 26/06/2013.
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