quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Erro é da Santa Casa


Antes que comecem a crucificar a auxiliar de enfermagem que aplicou vaselina intravenosa em uma menina de 12 anos, no Hospital São Luiz Gonzaga, na Zona Norte de São Paulo, é bom reconhecer que o erro principal é da Santa Casa de São Paulo, que administra aquela unidade hospitalar. Trata-se de erro de sistema, erro na concepção do fluxo operacional de insumos para atendimento dos pacientes. 

O atual administrador da Santa Casa daqui, de Ubatuba, Daniel Bicalho, certamente sabe das dificuldades de manter linhas contínuas, contíguas mas separadas, de fornecimento de insumos de higiene e limpeza, de medicamentos, de alimentação e de material administrativo. Ele nunca disse, mas o relatório preliminar da Cruz Vermelha, ao dar ênfase ao controle na organização administrativa e operacional, insinuava que esses fluxos não estavam bem. Creio que beiravam à bagunça, quando da gestão anterior. E ele certamente sabe que é de sua responsabilidade direta manter essas linhas em funcionamento, devidamente separadas, e que, qualquer que seja a falha ocorrida no processo, a responsabilidade será pessoalmente sua.

No caso ocorrido no Hospital São Luiz Gonzaga, a falha imediata, direta, foi da auxiliar, que injetou na veia da garota vaselina líquida, um fluido de consistência oleosa e imiscível com plasma sanguíneo, um produto para uso externo. Está mortificada pelo que fez, abalada emocionalmente, por saber-se responsável direta pela morte de uma menina, homicídio de modalidade culposa, provavelmente incluída nas qualificações do tipo penal por imperícia e negligência. Imperícia, porque estava habilitada para a função e presumivelmente tinha os conhecimentos técnicos necessários, bem como a decorrente obrigação de adotar os cuidados necessários antes de injetar qualquer substância na veia de um paciente. Negligência, porque negligenciou, quando do efetivo uso, a leitura do rótulo estampado na embalagem do produto. Ela afirma que leu o rótulo, e que era o apropriado, mas que, na hora de pegar o frasco, acabou pegando o outro, idêntico.

Mas se a falha foi da auxiliar de 26 anos, o erro foi do sistema, de toda a cadeia administrativa acima dela, especialmente do burocrata que tem assento em alguma superintendência, gerência ou diretoria da instituição Santa Casa de São Paulo. Não é nem de longe admissível a permanência, em um mesmo espaço, de produtos de uso interno e externo identificados por anódinas e quase idênticas etiquetas autocolantes, e em frascos de idêntica aparência. Até mesmo os auxiliares dos supermercados, aqueles rapazes e garotas prestativos que colocam as compras nas indefectíveis sacolinhas plásticas, sabem que não devem misturar produtos de limpeza com produtos para alimentação, produtos congelados ou refrigerados com latarias de temperatura ambiente, e por aí vai. Muitos talvez aprendam sozinhos, baseados nos critérios de bom senso, mas o adequado é que sejam treinados para isso. Treinamento é a palavra-chave, e essa responsabilidade é da empresa ou instituição.

É também responsabilidade do empregador manter, nos termos da legislação, as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes - CIPAs, e o que ocorreu no Hospital São Luiz Gonzaga, foi acidente. As comissões são de prevenção, aquilo que se faz preventivamente, para evitar que o acidente aconteça. Caberia ao administrador dos fluxos, mas também à CIPA, impedir a culposamente criminosa semelhança de frascos e etiquetas, daquilo que é para uso interno e do que é para uso externo. Fala-se aqui de culpa, mas bem que, pela gravidade do ocorrido, poder-se-ia falar, quanto ao gestor do fluxo, em dolo eventual, pela assunção de um risco potencialmente grave. 

No entanto, até agora, não é disso que tratam as autoridades policiais. Por enquanto, a única e exclusiva culpada é a auxiliar que, lá na ponta, no final do processo, ligou o frasco de vaselina à veia da menina de 12 anos, uma vida toda pela frente, precocemente ceifada.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá, em 13/12/2010.

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