quarta-feira, 13 de março de 2013

Concessionárias fazem Ubatuba sofrer com chuvas


Água, energia elétrica e telefone são considerados serviços essenciais e operados sob regime de concessão. O poder concedente, no caso da telefonia, já foi municipal, mas agora todo o sistema opera sob concessão federal. Igualmente, o setor elétrico, no qual, se remanesce algum resquício de distribuidora municipal, a geração e a transmissão definitivamente são concessão federal. O fornecimento de água (e coleta de esgoto) ainda depende de concessão municipal, mas a maioria dos municípios ou nunca teve, ou desistiu de seus serviços municipais de água, usualmente chamados de SAE ou DAE, autarquias, e mais raramente de Companhia de Águas, ente de direito público ou, raridade maior ainda, de economia mista. Em todos esses casos remanescentes, foram municípios que souberam gerir bem seus recursos. Ninguém entrega para a Sabesp um sistema funcionando bem e que esteja financeiramente equilibrado.

A Sabesp veio para botar ordem no galinheiro que era o saneamento básico no Estado de São Paulo, com galinhas empoleiradas em vários níveis, imaginem, mamando com seus bicos sôfregos nas tetas municipais.

Não que ela própria seja imune a algumas mamadas, ou mamatas. É só observar como gasta sua verba publicitária, notadamente em períodos eleitorais: Serra não anda bem nas pesquisas no Nordeste? Ora, a Sabesp pode dar uma mãozinha por lá, não pode?

Nem sempre Sabesp está atrelada à palavra "transparência". Não foi como medida de transparência que uma sessão extraordinária, daquelas que não são transmitidas nem a população fica previamente sabendo a pauta, que a Câmara Municipal aprovou, convocando vereadores em pleno recesso para apreciar projeto do ex-prefeito Eduardo César, em regime de urgência, sobre convênio com a empresa, na prática algo para valer por 30 dias. Não? Seriam 30 meses? Não? Ah, por 30 anos, sem que houvesse qualquer audiência pública, sem um plano de metas, sem coisa alguma, nem mesmo manifestação dos que estão ora no poder municipal. Ubatuba, em matéria de saneamento básico, talvez não esteja muito melhor do que o Maranhão, Maranhão de Sarney e da Cruz Vermelha. No meu bairro aqui no pé do Funhanhado não existe coleta de esgoto, ainda que a respectiva tubulação esteja enterrada em parte dele. Boa parte dos moradores bebe o que chamam de água da cachoeira, proveniente de captações improvisadas no sertão, sem nenhum tipo de tratamento. Os índices do saneamento básico, considerando todo o município, não são bons: 75,3% da população tem água tratada, e 63,2% coleta de esgoto, dados do Censo Demográfico 2010, citados pelo Instituto (privado) Pólis - Litoral Sustentável. Tratamento do esgoto, que é bom, é precário: só parte recebe algum tratamento, antes de ir para o mar. A Cetesb ameaçou interditar os emissários marinhos do litoral paulista, inclusive de Ubatuba, porque a situação estava crítica. Até onde se sabe, o problema continua, desde 2010, conforme matéria do jornalista Saulo Gil, quando era jornalista e ouvia com ouvidos de jornalista.

Em dezembro de 2007 o agora prefeito Maurício talvez já estivesse desencantado com o então prefeito Eduardo César, que tinha ajudado a eleger. Ano seguinte, 2008, Maurício foi, ele próprio, candidato a prefeito. Em 2007, numa de suas raríssimas aparições na mídia como autor de algo (e o valente sirizinho O Guaruçá, que fez aniversário agora, dia 8, tem excelente memória), falou sobre saneamento e Sabesp: "É hora de Ubatuba tratar essa questão de maneira séria, técnica, política, apartidária e voltada aos interesses sociais, ambientais e econômicos." Assinou como "Presidente Municipal do PT, ex-presidente do Conselho Municipal de Saúde, ex-coordenador do GT de Saneamento do Plano Diretor de Ubatuba e ex-presidente da Associação dos Cirurgiões Dentistas de Ubatuba" E disse: "Com a palavra Prefeitura Municipal de Ubatuba e Sabesp."

Opa! Maurício Moromizato foi tudo isso e agora é o prefeito e a própria Prefeitura. Com ele, Maurício, a palavra, de preferência escrita, coisa que só faz muito de vez em quando (ler parece ser ainda mais raro).

Bem, mas o que isso tem a ver com as chuvas? No dia seguinte à tempestade do dia 22 de fevereiro faltou água em toda a região abastecida pelo famoso sistema Carolina, incluindo o bairro aqui no pé do Funhanhado. É que a água bruta estava em péssimo estado, e a estação de tratamento não dava conta de colocar os parâmetros de turbidez e cor no lugar certo. Bem verdade que foi uma chuva muito forte, 173 mm num só dia, mas o pequeno dilúvio pegou a concessionária de jeito: ela não estava preparada. Mas se trata de um evento que, se não é previsível quanto a data e horário, é estatisticamente previsível para um dado período.

Não foi diferente com a telefonia, várias ERBs (estações rádio-base, aquelas torres e antenas para celulares que sabem ser feias) apagaram, assim como alguns telefones fixos.

Mas as chuvas pegaram mesmo de jeito, de calças curtas, foi a concessionária de distribuição de energia elétrica, que atende (ou não atende, "o sistema está fora do ar", talvez imerso na enxurrada) pelo nome de Elektro, empresa que é avessa a dar informações, que faz mistério sobre todas essas coisas já por si misteriosas. Deve ser porque leigo tem capacidade de entendimento muito limitada dos mistérios da eletricidade. Leigo só sabe que, quando aciona um interruptor, uma lâmpada começa a brilhar. Quando bota o plugue da geladeira na tomada, ela começa a funcionar. Mas e quando a lâmpada brilha pouquinho, as incandescentes ficam meio amareladas, amarronzadas? E quando a geladeira faz um barulho estranho, o motor ameaça dar partida, mas não consegue?

Apagão é fácil de entender. Apaga tudo, desde a iluminação pública até o acendedor elétrico do fogão. Hora de apelar para as caixinhas de fósforos e para as velas, coisas baratas pero no mucho, e inegavelmente perigosas. Quem já foi a uma agência da Sabesp provavelmente terá recebido de brinde um desses copinhos plásticos lacrados, com uns 200 ml e um rótulo vistoso denotando orgulho: "Água da Sabesp". Quem já foi comprar ou trocar seu celular certamente ganhou um brinde qualquer, uma caneta, uma camiseta, uma capinha para o aparelho. Mas as distribuidoras de energia elétrica não dão brindes, são muquiranas. Bem que a concessionária daqui poderia se diferenciar das demais, oferecendo de vez em quando um brinde (barato, pero no mucho): um maço de velas e uma caixa de fósforos, com a marca "Elektro", talvez até com a inscrição "Fabricada em Campinas". Seria um gesto agradável e útil.

Pois bem, a chuvarada do dia 22 de fevereiro causou um apagão, mas, depois de um tempo, a energia elétrica voltou, com cor de vela, lâmpadas incandescentes luzindo amareladamente tais como velas. Mas algumas brilhando a pleno vapor de sódio, amareladas sim mas de brilho intenso, como as dos postes aqui na minha rua. Que mistério é esse? Não é mais ou está normal, ou está em apagão?

Até leigo sabe que a tomada é de 110 ou 220. Que lâmpada de 220, quando colocada em soquete de 110, brilha pouco, uma luz amarelada. Não é bem assim. A tensão nominal da rede para uso doméstico é 127v ou 220v. Os 127v são obtidos através do fio de uma fase e do fio chamado neutro. A tensão de 220v é obtida através dos fios de duas fases, sem o uso do neutro. Mas há sistemas domésticos, como aqui em casa, nos quais a energia elétrica é fornecida em três fases. Cada uma delas e neutro resulta em, nominalmente, 127v. Duas fases, quaisquer delas, resulta em 220v. Mas há um mistério, que é o retorno de fase. Quando há falha no fornecimento de uma das três fases, essa fase faltante não fica "zerada", porque é alimentada pelo chamado retorno, coisa que qualquer eletricista sabe. É que lâmpadas ou aparelhos ligados a duas fases, quando uma falha, seja resistivamente (lâmpadas, por exemplo), seja indutivamente (motores, por exemplo, e peço que apenas acreditem em mim, é um mistério difícil de leigo explicar para leigo), fazem com que uma parte da tensão, limitada à corrente do equipamento, retorne para a fase faltante, que então se apresenta com tensão flutuante e com corrente (amperagem) flutuante. Uma excelente receita para queimar alguns tipos de eletrodomésticos.

Depois de algumas horas, na madrugada já do dia 23, duas fases ficaram normalizadas, mas a terceira... Só perto da manhã é que o sistema todo se "normalizou". Entre aspas, porque, na noite seguinte, o problema se repetiu e só então, depois de algum misterioso exorcismo, que levou algum tempo, algum pajé da Elektro conseguiu botar a fase recalcitrante para funcionar direito.

Houve várias interrupções de energia elétrica ao longo do ano passado, inclusive em dezembro, mas a conta de luz que chegou aqui, do "Conjunto Ubatuba Um", diz que a DIC - Duração de Interrupção Individual, em horas, meta anual 19,34, foi, real, de zero vírgula zero zero. Diz que a FIC - Frequência de Interrupção Individual, meta anual de 12,70, foi, real, de zero vírgula zero zero. Diz que a DMIC - Duração máxima de Interrupção Contínua, em horas, meta mensal de 2,69, foi, real, zero vírgula zero zero. Ou seja, jamais houve, por esses indicadores, falta de energia elétrica aqui em casa. Ou seja, são esses os dados fictos que a Elektro passa para a Agência Reguladora de Saneamento (ah, a Sabesp...) e Energia do Estado de São Paulo - ARSESP, e para a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL. Esses dados, fictos, que devem colocar a concessionária como campeã brasileira, quiçá mundial, em qualidade de distribuição de energia elétrica, são aceitos passivamente pelas agências reguladoras. Foi assim com o grupo de empresas da qual fazia parte a distribuidora Vale do Paranapanema (que atendia Assis, onde eu morava), que se divulgava como a segunda melhor em qualidade, e que, ano passado, sofreu intervenção da Aneel antes que todo o sistema que ela operava fosse para o beleléu.

Com chuva ou sem chuva, as concessionárias ficam bem na fita com as agências reguladoras. Ao consumidor, resta sofrer as consequências.

Tomógrafo da Santa Casa
"O raio" destruiu algo no tomógrafo da Santa-Casa, recém-instalado. Foi um raio-que-o-parta do dia 22 de fevereiro, do temporal e das chuvas de 173 mm, um dos muitos daquela noite, propagado pela rede elétrica. Ainda não há informações confiáveis, quanto a estragos, custos e responsabilidade. Em princípio, se a propagação do raio deu-se pela rede elétrica, a responsabilidade pelo ressarcimento é da concessionária.

O que se sabe é que, além do tomógrafo, aparelho importante, essencial em alguns casos, para o correto diagnóstico quanto a pacientes internados no hospital, também foram para o beleléu umas três dezenas de computadores e um PABX na Prefeitura. Segundo o provedor de fato da Santa Casa, Robertson Martins, há gestões para que o pedido de ressarcimento à concessionária seja em conjunto, com a assinatura de Maurício. Não foi possível confirmar, porque Maurício está opaco, blindado, inacessível.

TrixNet
Até a visita ao Brasil da jornalista cubana Yoani Sánchez eu achava que a internet mais cara do mundo era a da TrixNet, meu provedor Internet Service Provider-ISP via rádio aqui de Ubatuba, que cobra o equivalente a um pouco mais de 70 dólares mensais por 1mbps. Yoani paga, em Cuba, uns 10 dólares a hora. A Trix tem um sistema intrinsecamente instável, que depende de diversas variáveis, a começar pela qualidade da internet que, no fim das contas, é a Telefonica Data que entrega, através de cabo de fibra ótica, sujeitos - como uns meses atrás - a ser atropelado por alguma escavadeira em Caraguatatuba. Outra variável é a sobrevivência de seus repetidores de rádio quando há chuva, ventania e raios. A coisa anda ficando tão feia que a Trix resolveu investir em painéis solares e bancos de baterias, porque não tem como confiar na energia elétrica entregue pela concessionária Elektro. A gota d´água foi o raio que destruiu, dia 6 agora de março, o transformador e cabeação do morro do Cais (onde ficam também repetidores de TV), bem como o próprio padrão de entrada da Trix em seu principal repetidor. A Elektro prometeu entregar o serviço pronto até o fim da tarde da quinta-feira, mas... Mas não tinha emenda para cabos, coisa que seria providenciada na sexta-feira, insumo a ser buscado em Bertioga. As baterias do rádio da Trix duraram até, aproximadamente, 3h da madrugada da sexta-feira, e, na manhã desse dia, os técnicos se preparavam para uma caminha íngreme morro acima, para descobrir o que significa carregar bateria, carregar no lombo. Serão dois conjuntos para uma autonomia inferior a dois dias.

Como sou do tempo pré-internet do Blue Wave, com modens de 4.8, 12, depois 24 e finalmente 46kbps, e da banda larga do Speedy a 240kbps, 1 mega da Trix até que seria uma velocidade razoável. Hoje é o mínimo do mínimo e nem sempre o ISP consegue entregar a velocidade contratada. O recorte topográfico do nosso litoral tem a muralha da Serra do Mar, que subiu (antes da atual separação dos continentes) devido à trombada com a África. Divagando, abençoada trombada, que deixou, no pequeno Oceano Adamastor, uma grossa camada de sal e o tesouro escondido embaixo dela, petróleo de boa qualidade, o chamado pré-sal (os geólogos partem do petróleo em direção à superfície). Abençoada, mas até agora Ubatuba não viu a cor do dinheiro dos royalties e das compensações ambientais da Petrobras. Mas verá alguma coisa, porque os royalties, mesmo com a derrubada do veto de Dilma ao projeto aprovado no Congresso, beneficiarão todos os Estados e Municípios não produtores de petróleo. Pouquinho, mas vem para ajudar. Fim da divagação.

Voltemos ao recorte topográfico daqui, com enseadas, sacos e morros, muitos morros. Rádio e televisão só funcionam aqui (afora via satélite) se tiverem repetidores nos vários bairros. Uma certa radiozeca, que não é qualidade A, mas B. Azul (em Roma dirija como os romanos, em Ubatuba escreva ironizando), só ganhou mais ouvintes porque decidiu transmitir também via internet. Mas algum dia chegará aqui, no pé do morro do Funhanhado, uma fibra ótica. Como diz a propaganda, será uma Net, a (equivalentes) uns 15 dólares por mês, e não tipo Net, como é o caso da Trix, a quem se recomenda ter uma visada mais larga, auscultar o que o futuro diz, ou preparar-se para deixar o mercado.

Mais raios
O Brasil já é campeoníssimo em incidência de raios, e as coisas já pioraram na região e vão piorar ainda mais, disse na semana passada a uma TV regional um técnico do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, montanha acima logo ali em São José dos Campos. Ubatuba não é especialmente alvo de raios, dizem as estatísticas. Mas, parece, aqui eles causam estragos mais graves. No entanto, o Litoral Norte não tem um sistema eficiente de alerta para raios e tempestades.

Foram feitos alguns ensaios, o próprio INPE manteve, por pouco tempo, sistema de alerta bem sofisticado, a partir de um radar meteorológico, um tanto deficiente para detectar o que acontece no Litoral abaixo da Serra, mas, ainda assim, útil. A alegria durou pouco, o experimento, por razões jamais publicamente esclarecidas, terminou e o radar foi deslocado para outro local, talvez Lins (local incerto e não sabido). Era uma boa página, possibilitava alterar o nível de transparência dos layers. O INPE assina mais duas páginas (www.inpe.br/webelat/homepage e peassaba.cptec.inpe.br/sigma), esta última com dados bem semelhantes a www.rindat.com.br, todas com o modernoso sistema de layers sobre fotos de satélite. O problema é que não é possível administrar o nível de transparência nem mudar, quadro a quadro, a animação disponibilizada, o que dificulta, e muito, acompanhar como e para onde a tempestade se desloca. Algum programador deve estar feliz com sua criação, mas os usuários acabaram prejudicados.

- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 13/03/2013
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terça-feira, 12 de março de 2013

Cri-cri cobra promessas de campanha em Ubatuba


"Uma das propostas de campanha do PT em Ubatuba foi a implantação do orçamento participativo. No entanto, mudar práticas, comportamentos e mentalidades é bastante difícil e demorado. Não se pode perder tempo e ocasião." Rui Grilo, em Promessas de campanha em Ubatuba, um cri-cri.

Narigão de cera
As honestas e por vezes ingênuas reclamações de ativistas petistas históricos me comovem. Política não é coisa para ingênuos, como não foi para o "ingênuo" (uma das designações históricas, constitucionais e legais dos indígenas brasileiros) cacique Juruna, o primeiro indígena eleito deputado federal (pelo PDT de Brizola) no Brasil. Juruna, de vez em quando, ostentava uma borduna, como símbolo de sua combatividade, mas a história registra que jamais desferiu golpe em quem quer que seja. Combativo, mas pacífico, pacifista. Ingênuo, Juruna acreditava nas pessoas, nas palavras das pessoas, mas logo descobriu que as pessoas negavam que tivessem dito as palavras. Ingênuo, mas atento à tecnologia da época, Juruna conseguiu um gravador "para registrar tudo o que o branco diz". Creio que andou perdendo a ingenuidade quando descobriu que, o que branco dizia e ficava gravado, pouco significava, porque as atitudes, as práticas, as ações e comportamentos negavam o dito e gravado. Em homenagem ao cacique xavante, etnia que me é pessoalmente cara, batizei de Juruna o gravadorzinho digital que uso quando faço entrevistas, fontes primárias para textos destinados à publicação aqui em O Guaruçá, nossa oca eletrônica.

O até agora escrito não foi apenas um simples nariz de cera, que a imensa maioria dos jornalistas considera como algo (em oposição à técnica do "lead") absolutamente desnecessário. Foi um narigão.

Cri-cri
Rui de sobrenome Grilo é, certamente, um cri-cri, que azucrina os poderosos de plantão. Que já teve fortes embates com juízes e promotores, porque pretendia apenas exercer, dentro dos limites constitucionais e legais, seu direito à cidadania. É colunista aqui de O Guaruçá, umas 12 respeitáveis páginas de títulos de matérias. É um confesso ativista da Educação Popular, petista convicto, tem problemas de saúde semelhantes aos que eu tenho, não está à cata de vaguinha remunerada (nem eu estou). Conserva, preserva, um quê de saudável ingenuidade, mas não é um ingênuo e sabe estrilar quando percebe que as coisas não vão bem (quero ser assim também).

Grilo, cri-cri, foi ao ponto, quanto a seu próprio partido, o PT: orçamento participativo foi promessa de campanha. Orçamento participativo não nasce pronto, não é feito depois, é feito participação antes, no primeiro momento possível, no momento mesmo da simples sabatina sobre o orçamento (execução orçamentária) anterior. Ou é participativo, tem a participação do povo, ou é apenas o ramerrão useiro e vezeiro em política (especialmente na nanica), apenas palavras que, mesmo quando gavadas em gravador de voz ou texto, não podem ser levadas a sério.

Nem adianta tentar pretender que o cidadão comum sequer leia um trechinho do orçamento. Lê-lo todo (especialmente os anexos) é impossível, é o mesmo que ler um dicionário em chinês clássico. Como diz Grilo, "poucos aguentam a leitura de balancetes e estatísticas. No entanto, as dúvidas e questionamentos de cada um podem ir revelando o que se esconde através dos números." É nisso que podem ajudar os funcionários municipais especialistas nos números, assessorando os políticos que decidem sobre esses números, ambos explicando, resumidamente, o que diz o orçamento e o que se fez e se pretende fazer com os recursos previstos nele. Tenho comigo que nem é muito o caso de perder tempo com números, mas só entender os grandes números e seu impacto em cada segmento dos vários setores: Educação, Meio Ambiente, Obras aqui no meu bairro. E, em cada oportunidade, dizer com todas as letras e números, bem grandes, o percentual de gastos com pessoal, que sempre precisará ficar abaixo de 60% da receita corrente líquida, o limite imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Quanto mais abaixo melhor, mas sem estrangular a operacionalidade da gestão municipal. É um fio da navalha, um cobertor curto que precisa ser bem administrado, é absolutamente necessário saber dizer "não" a algumas pretensões dos funcionários, especialmente salariais. Não é coisa fácil e pode virar pesadelo. Uma das causas do desgoverno anterior certamente foi a opção pela "enorme turma" e o desequilíbrio que causou, privilegiando uns em detrimento de muitos.

Transparência
Até agora, a transparência não é o forte do governo de Maurício Moromizato. Pode parecer incrível, mas até Eduardo César cumpria a lei, ao publicar no site da Prefeitura a execução orçamentária, valendo até agora a palavra dele de que deixou uns 17 milhões em caixa, em 31 de dezembro, porque os empenhos de janeiro ainda não foram publicados. De primeiro de janeiro até agora o site da Prefeitura, exceto Secretaria da Fazenda, está fora do ar. E, mesmo nos domínios dessa Secretaria, nada de publicação sobre a execução orçamentária. Tarcisio Carlos de Abreu, o titular da pasta, está permanentemente em reunião ou viajando, não retorna recados: vale dizer, está inacessível, o que faz lembrar o secretariado de Eduardo César, administração que tinha horror a transparência e a dar informações que não fossem através da ufanista assessoria de comunicação. Na Secretaria da Fazenda, se algo mudou, até agora foi para pior. O discurso era mudar, mas para melhor, para fazer Ubatuba brilhar.

Há outra promessa de campanha que não está sendo cumprida. O próprio prefeito blindou-se e não está cumprindo uma das promessas de campanha, feita no auditório da Unitau quando de um evento com candidatos a prefeito, patrocinado por uma obscura "Comissão de Cultura". Maurício disse que ele, pessoalmente, ele prefeito, ouvir a população diretamente, em um dia da semana, era "algo para se tornar obsoleto", algo até que a população tivesse confiança no funcionalismo e nos secretários das várias pastas. Esse algo até agora não aconteceu e o prefeito está tão blindado, especialmente por seu chefe de gabinete, que falar com ele é, na prática, impossível. O chefe de gabinete, parece, vê inimigos por toda a parte, e citou nominalmente o UbaWeb. Se fosse médico e trabalhasse na Santa Casa o chamaria, certamente, de deus do gabinete.

Maurício, instado a ser participativo
Diz dito popular que, se conselho fosse algo valioso, seria vendido e não dado "de grátis". No entanto, conforme os princípios da solidariedade, conselhos, recomendações e dicas oriundos da experiência devem ser ofertados por seu conteúdo intrínseco, gratuitamente. Maurício, com toda a certeza, empenho minha palavra, minha honorabilidade (porque estava presente com ouvido de escutar, e sou surdo do ouvido direito, ouço melhor a voz da esquerda), ouviu conselho sobre orçamento participativo, de um prefeito que foi eleito e reeleito e hoje é deputado estadual, uma referência estadual no partido dele, o PT. O conselho foi de uma simplicidade cativante: "Maurício, tudo, qualquer coisa, que diga respeito a orçamento participativo, precisa ter a presença do prefeito. Não basta mandar os secretários. É o prefeito, pessoalmente, que precisa ouvir, que precisa levar (além das pauladas) ao seu coletivo de governo, à estrutura de governo, o que o povo pede".

Uau, Maurício, Ubatuba vai efetivamente brilhar, se não tiver orçamento participativo com participação popular e participação do prefeito?

Adendo
Meu pai, Joel, dizia sempre que na ascendência de sua família - e minha ascendência, consequentemente - havia uma bugra mato-grossense, coisa que meu avô paterno Ignácio, farmacêutico prático, cego de catarata desde a pouca idade de uns 60 anos, confirmava, dizendo que era uma xavante alta, grandona, esguia. Que eu saiba, não há registro de fotos, mas os traços paternos não negavam que algo dos genes da bugra estavam presentes. Certamente herdei alguns desses genes e, talvez por conta deles, tenho um carinho especial pelos povos indígenas e, destes, algum carinho especialíssimo pelo povo Xavante, o povo do cacique Juruna, o ingênuo do gravador.

- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 12/03/2013
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sexta-feira, 8 de março de 2013

Arrelá mulheres valentes, arrelá sirizinho valente


Oito de março é o Dia Internacional da Mulher, em homenagem a todas as valentes mulheres que suportaram o insuportável, foram covardemente assassinadas, queimadas vivas por algum covarde capitalista que negava a elas qualquer direito, que lutam até hoje por trabalho, igualdade e justiça, que lutam até hoje para serem aceitas pelo que são: pessoas, humanas, pessoas humanas. A data, oito de março, foi adotada pela ONU em 1977, com direito a ampla controvérsia sobre fatos históricos. Hoje há a busca de um consenso de que a data, talvez arbitrariamente definida, e sem reducionismo a um único fato, representa todo o conjunto de martírios pelos quais passaram as mulheres em busca, fundamentalmente, do direito ao trabalho digno.

É um dia de luta, muito mais do que um dia para comemorar. Para quem pensa que a luta das mulheres é uma luta já ganha, falei, num adendo, sobre uma mulher muito jovem, criança ainda, Malala Yousafzai.

Oito de março, dia de luta das mulheres, é também um dia para comemorar, o nono ano de um sirizinho combativo. O Guaruçá, sirizinho valente, tem algo de mulher, com toda a certeza, porque também é conhecido como maria-farinha, nosso Ocypode albicans, ou mesmo Ocypode quadrata, como disse um colunista de primeira hora, Herbert Marques: "Ocypode para os entendidos é palavra grega e é dada aos caranguejos de um modo geral porque significa aquele que têm pés ágeis. Nosso GUARUÇÁ, certamente nome definitivo do nosso diário, terá pernas ágeis para andar por aí a informar, alegrar, fofocar. Conte comigo."

O Guaruçá, cujos primeiros textos foram do Sidney Borges, do Eduardo Souza (amigo que não conheci em vida), da Luana Camargo, tem algo de mulher. Não que tenha problemas com a definição de gênero. É que sua valentia tem tudo a ver com a valentia das mulheres, seres que, contra tudo e contra todos, se impõem pelo que são: meigas, cuidadoras, doces, delicadas, valentes, bravas, brabas às vezes, nos dão sopapos (figurados, quando as provocamos), críticas sempre. O Guaruçánão tem preconceitos. Dá espaço às mulheres, para crônicas, poemas, comentários e críticas (de direita, de esquerda), de jovens, maduras, velhas. Nosso valente sirizinho não as discrimina por nada. E as homenageia nesta data: o editor, Luiz Roberto, confidenciou-me que a revista diária O Guaruçá já estava pronta de véspera, mas que ele esperou o Dia Internacional da Mulher para lançá-la, em despudorada homenagem. Desde então o editor (hoje é cult falar em publisher), nestes nove anos, jamais falhou um dia sequer - graças ao seu esforço pessoal, a única pessoa que realmente sabe a trabalheira necessária para isso.

Desfilaram aqui pela nossa oca eletrônica, como chamo a revista, muitas mulheres, inclusive Marlene, a minha especial mulher, amada, cujo primeiro texto, fazendo referência ao caso hoje, no dia de hoje, que está na moda, do goleiro Bruno e do assassinato de Elisa, foi sobre "A supremacia do macho".
Homenageio agora as mulheres da minha vida, minha avó materna, Josefa, que me chamava de "Écho" e que me ensinou um pouco de italiano - e, em contrapartida, ensinei-a a ler um pouco em português, antes que ficasse completamente cega -, minha mãe, Isabel; a mãe dos meus dois filhos mais velhos, Rosa; a mãe das minhas duas filhas mais novas, Marlene, e - fora o Juliano, o filho homem - as mulheres minhas três filhas: Tatiana, Ligia e Elka.

Rememorando
Tenho escrito nos últimos tempos sobre a Santa Casa de Ubatuba, sem muito conhecimento de causa do passado da instituição, e mais focado no presente, no que acontece hoje, mas sem prescindir de tudo aquilo que os colaboradores de O Guaruçá escreveram ao longo do tempo, inclusive Herbert Marques, que compareceu à nossa revista eletrônica na sua edição inaugural. Em uma reflexão sem paixão, ele disse que "A Prefeitura poderia muito bem pagar, pelo menos o rombo que ela propiciou em sua desastrada intervenção. O resto talvez desse para ser absorvido por uma administração séria e competente. Que tal procurarmos essa administração?"

Herbert Marques disse isso em julho de 2010. A pergunta continua atual.

Arrelá, mulheres e nossa oca eletrônica

Como diz o Julinho, arrelá! Arrelá mulheres de Ubatuba e do mundo inteiro! Arrelá, nosso sirizinho O Guaruçá!


- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 08/03/2013
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quarta-feira, 6 de março de 2013

Chuvas e os estragos em Ubatuba


Fevereiro teve dois dias especialmente chuvosos, uma sexta-feira, 22, e uma quarta-feira, 27, que provocaram estragos e deixaram desabrigados, em Ubatuba. Por sorte, ninguém morreu - desta vez. Mas há áreas de risco no município e uma delas é exatamente aqui, desde as primeiras cotas do Funhanhado, onde recentemente a Defesa Civil fez um treinamento, junto com a população, para que todos tenham ao menos uma noção do que fazer em caso de desastre.

Há duas situações potencialmente perigosas, quando se trata de chuvas. Uma delas é um acumulado muito grande concentrado em poucos dias, como foram os casos do vale do Itajaí, em Santa Catarina, que por duas vezes viveu grandes tragédias, e da região serrana do Rio de Janeiro. A outra é um volume apenas razoável de chuva em muitos dias, mas que acaba encharcando o solo. No vale do Itajaí aconteceram as duas coisas. Em basicamente três dias o acumulado passou de 400 mm, e o total de todo aquele novembro de 2008 chegou a inacreditáveis 1.000 mm, deixando o solo muito encharcado e pesado, com escorregamentos de terra contados na ordem de milhar. O solo, disseram os geólogos, demorou cerca de seis meses para se estabilizar. Na região serrana do Rio a tragédia foi maior, em número de vítimas, e mais concentrada, numa região de encostas traiçoeiras, formações da mesma natureza que temos por aqui.

Solo encharcado é sempre um risco, e quem sobe e desce frequentemente pela Tamoios sabe que os escorregamentos podem acontecer em dia de sol, sem que esteja chovendo naquele momento. Nos dois primeiros meses do ano a Defesa Civil apontou acumulado de 750 mm, disse a Prefeitura de Ubatuba em nota. Nesse quadro de solo já encharcado, não foi de estranhar que a chuva do dia 22 de fevereiro causasse estragos, atingindo, em maior ou menor grau, cerca de 150 famílias.

O que aconteceu naquela sexta-feira? O Comitê de Bacias do Litoral Norte tem uma página abastecida com dados do Centro Integrado de Informações Agrometeorológicas - CIIAGRO, que opera um pluviômetro na margem direita (sentido Taubaté) da rodovia Osvaldo Cruz, aproximadamente 600 m antes do posto da Polícia Rodoviária e a uns 5.300 metros da praia de Yperoig, aproximadamente no centro do fenômeno que castigou especialmente os bairros Ipiranguinha e Guarani. O CIIAGRO teve a gentileza de disponibilizar dados brutos de seus arquivos, que permitiram entender melhor a sequência dos acontecimentos. Os dados do pluviômetro são coletados de 20 em 20 minutos.

Naquele dia 22, as primeiras chuvas foram registradas às 14:20 horas e, até as 15 horas, o total havia chegado a 23,1 mm. Das 18 às 19h20 choveu mais 13 mm. E das 20h20 até as 22, em 1h40, foram mais 133,4 mm, com muita ventania e raios. O total, desde as 14h, foi de 173,2 mm, o que vale dizer tomar um quadrado de um metro por um metro e despejar 173 litros de água nele, o que fará o nível subir os exatos 17,3 centímetros. Não parece muito, mas isso é o que ocorre em cada metro quadrado. Se isso for multiplicado pela área dos bairros afetados será um volume absurdo de água. Quem se der ao trabalho de fazer esse pequeno experimento verificará que, dependendo do solo, a absorção será muito lenta. Se houver um dreno inferior no experimento, a vazão será muito alta.

Dia 26 de fevereiro o total das chuvas foi de 30,2 mm, e no dia 27, uma chuva forte atingiu 70,1 mm. Luiz Eduardo Carpinetti de Souza, leitor de O Guaruçá, registrou resultado numa rua do centro. Mais famílias afetadas, mais estragos.

Defesa Civil e Prefeitura estão atentas, e pedindo doações. É hora, sim de solidariedade, e é hora de Ubatuba entender que esses podem ser avisos de uma tragédia maior. Em algum momento será necessário cumprir planos e agir, removendo para locais dignos os moradores hoje em áreas de risco.


- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 06/03/2013
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Deus, problema no hospital de Ubatuba


Deus não é problema exclusivo do único hospital de Ubatuba, é problema geral nos hospitais e ambulatórios médicos. Estamos em Ubatuba. Falemos, então, de Ubatuba e dos deuses de Ubatuba, o rabo norte dos CUIS (Caraguá, Ubatuba, Ilhabela e São Sebastião) do Litoral Norte.

Um dos graves problemas no único hospital de Ubatuba, a Santa Casa Nosso Senhor dos Passos, é deus, ou, pluralmente, os deuses, os doutores de vestes brancas e estetoscópio pendurado no pescoço. Deus, também aqui, em Ubatuba, provoca um temor não apenas o descrito pelas religiões monoteístas, o temor reverencial: provoca temor operacional, provoca medo, causa mesmo pavor em quem está sujeito à sua inquestionável autoridade, titular que é do ato médico e do decorrente "direito" de decidir sobre vida e morte. Deus é uma das personificações do mais sério problema (não é o único problema) do único hospital (e é privado, não é público) de Ubatuba, que é o problema sistêmico. O hospital está doente, e não há maquiagem de "reforma" da pintura que dê conta, porque o problema não é apenas pontual, não é nem neste detalhe nem naquele detalhe, é problema sistêmico. É problema de gestão, gestão clínica, gestão financeira, gestão de pessoal, gestão operacional. Contudo, não se trata de um hospital particular visando ao lucro. É uma entidade para "dar o coração aos miseráveis", uma Santa Casa de Misericórdia nos moldes de antiga tradição portuguesa, que ora brilha, ora sofre de obscurecimento total, mas que está em Ubatuba, cujo destino, como o de todo o município, destino decidido nas recentes urnas, é brilhar. Se não a instituição privada em si, há que ter em Ubatuba, e melhor que seja municipal, há que ter um hospital a brilhar.

Houve tentativas, a administração municipal anterior entregou a administração do hospital à Cruz Vermelha - filial Maranhão (há comentário sobre isso no final desta matéria). A administração da Cruz Vermelha mudou algo, mas pouco, no hospital daqui. Foi sucedida, ainda durante o mandato de Eduardo César et ingens turba, por uma administração já agora da Irmandade mantenedora, que reverteu parte das mudanças e procura descascar o abacaxi do jeito canhestro que consegue.

Os alertas e gritos pedindo socorro há anos se repetem, e se repetem, vindos de familiares de pessoas que buscam atendimento médico na Santa Casa Nosso Senhor dos Passos, de Ubatuba. Ainda agora em fevereiro, no dia 16, a jornalista Luana, movida pela indignação, relatou o desespero dela e dos familiares de sua irmã, já devastada pela morte de um bebê ainda no útero. Internada dia 14, o triste parto ocorreu no domingo, dia 17, e o enterro do bebê foi na segunda-feira, dia 18, mesmo dia em que ela recebeu alta. Mas o atendimento só realmente andou depois do grito de socorro e de o provedor do hospital tomar pé do caso, prestando melhores informações à família. Naquele fim de semana fatídico, disse a mulher internada, vários bebês morreram. A Provedoria informou que foram três parturientes de oitavo mês de gestação, que deram entrada no hospital com seus fetos já em óbito. Num específico caso, uma das parturientes estava grávida de gêmeos, um em óbito e outro que sobreviveu, nascido na 35ª semana da gestação. Foi mesmo um fim de semana triste.

Em hospitais bem estruturados e bem dirigidos o problema também existe, mas pontualmente, não sistemicamente. Sempre haverá os deuses. Há feudos, mas os doutores feudais respeitam as regras gerais desses hospitais. Aqui gerem os feudos acima das regras gerais.

Idosa, minha sogra sofreu uma queda, na noite do dia 22, e foi internada no hospital de Ubatuba no inicio da madrugada da antevéspera do Natal de 2012. Período complicado para o SAMU, plena temporada, muitos casos e rodovia e ruas lotadas, hospital cheio. Apesar da demora, o atendimento do SAMU, sob chuva fina, foi impecável. O plantonista do hospital providenciou internação e raio-X, chapa imediatamente interpretada pelo técnico da Radiologia, já que o deus da Ortopedia não estava lá: fratura de colo do fêmur, coisa para cirurgia e prótese. O técnico logo adiantou que a operação não poderia ser feita no único hospital de Ubatuba, que não tinha UTI, e que haveria necessidade de remoção. E tascou, sem o menor pudor, que poderia obter esse transporte, a preço mais módico do que aquele que em algum momento seria oferecido. Causou engulhos, naquele momento, todos preocupados com a saúde da idosa familiar, a oferta do técnico, algo assemelhado a urubu farejando carniça. Só depois, com o desenrolar dos fatos, foi que refletimos que aquela aparentemente nojenta abordagem significava, na verdade, conhecimento da realidade do único hospital de Ubatuba e uma oferta de alternativa. Há um comércio indecente de transporte de pacientes vicejando aqui.

Naquela madrugada e em toda a manhã seguinte nada de o titular do feudo da Ortopedia exercer o sagrado e exclusivo de deus, o ato médico, e examinar a paciente. Nada de conseguir de enfermeira e técnicas de enfermagem que negociassem a vinda do doutor: "ele fica bravo se a gente ficar telefonando, e aí demora mais ainda". Deus colérico, esse. E coube ao atendente de enfermagem especializado em Ortopedia, o auxiliar de deus, naquele dia seguinte, realizar sem supervisão o ato médico de "alinhar" a perna de minha sogra, procedimento doloroso para recolocar na posição anatômica adequada o quebrado e deslocado fêmur, algo que talvez a equipe do SAMU já tivesse feito, caso dispusesse de um médico. Mas não dispunha, e seguiu o protocolo, pois há procedimentos que constituem ato médico ou, no mínimo, exigem supervisão presencial do deus titular do ato médico.

Um deus menor que não questiona o deus maior, outro deus, já velhinho, mas simpático, plantonista, naquele dia deu uma olhada na paciente e na radiografia e pediu outra, pois disse não ter visto a fratura diagnosticada pelo não-médico técnico da Radiologia. Pois bem, não foi necessário novo raio-X, à tarde o deus maior constatou que, sim, havia fratura, necessidade de cirurgia, prótese, UTI pós-cirurgia, fisioterapia e tudo o mais, nada disso possível no único hospital de Ubatuba, nesse caso uma central de despacho para outros hospitais. As alternativas, via SUS, disse a supervisora de atendimento, com a qual só conseguimos contato na segunda-feira, eram os hospitais de Taubaté e São José dos Campos, montanha acima, mas que essas providências só poderiam acontecer a partir de quarta-feira, após o feriado do Natal. Nós, familiares, tratamos de buscar alternativa, um outro hospital particular mas que, em casos específicos, atende pelo SUS, um hospital de referência em Oncologia, e minha sogra já tinha sido atendida nele por conta dessa referência. Um hospital completo, bem administrado, com porta única de entrada e sem discriminar atendimento particular, por convênio com planos de saúde ou SUS. Claro que o rico paga muito, o plano de saúde e o SUS fazem o pagamento-padrão contratado, mas, exceto pela hotelaria, o hospital não discrimina ninguém, o atendimento médico é o mesmo para todos. Trata-se do Hospital A. C. Camargo, conhecido como Hospital do Câncer, mantido pela Fundação Antônio Prudente, em São Paulo. O atendimento por telefone foi impecável, mas fomos informados de que somente o médico do hospital de origem poderia negociar a vaga de minha sogra como transferência, pelo SUS.

Reiteramos com a supervisora de atendimento que acionasse o médico e buscasse vaga no A. C. Camargo, do qual minha sogra era, há anos, paciente atendida pelo SUS. Mas nada da supervisora falar com o deus da Ortopedia, o único que poderia fazer o encaminhamento para o hospital de São Paulo. Minha cunhada conseguiu pegá-lo pelo rabo, quando já estava de saída da Santa Casa sem ter passado, pelo segundo dia consecutivo, pelo quarto da paciente, apesar de todos os pedidos e recados deixados na enfermagem do andar, de que os familiares precisavam conversar com ele. Minha cunhada conseguiu então relatar a ele as gestões com o A. C. Camargo, das quais o deus da Ortopedia nada sabia - a supervisora de atendimento não tinha feito contato com ele. Deus não era onisciente, afinal, e nem um deus insensível. Ciente do risco de escaras, havia determinado, no terceiro dia de internação, que fosse transferida para leito em apartamento dotado de ar-condicionado, prescrevendo o uso de um colchãozinho tipo "caixa de ovos", umas pequenas pirâmides de espuma. Claro que o hospital não tinha isso disponível e precisamos comprar no comércio ali por perto do hospital, mas nesse intervalo uma prestativa enfermeira (daqueles anjos bonitos) providenciou um, ainda que encapado com um plástico. Bem, as escaras deram as caras, afinal.

Não era, o deus, insensível, e, assim que soube das gestões com o A. C. Camargo, com toda a boa vontade e empenho fez os telefonemas necessários e autorizou a transferência, na tarde do quarto dia de internação de minha sogra. Na manhã do quinto dia, minha esposa recebeu, em casa, um telefonema do Hospital A. C. Camargo, dizendo que a vaga estava disponível, mas que não conseguiam contato com a tal profissional, a supervisora de atendimento, responsável da Santa Casa de Ubatuba para tratar dos detalhes. Mais um problema sistêmico, atendimento telefônico mais do que sobrecarregado. Minha cunhada, a acompanhante de minha sogra, foi avisada por celular dessa dificuldade e tratou de fazer gestões pessoais junto à profissional da Santa Casa para que contatasse o setor responsável do Hospital de destino.

Bem, a transferência. Era coisa para os cuidados da supervisora de atendimento, transferência pelo SUS. Mas as ambulâncias do SUS só estariam de volta no início da noite, explicou. E não viajavam à noite. Talvez fosse possível na manhã da sexta-feira, seguindo a ordem de requisições - e a ordem de requisição da minha sogra sabe-se lá qual era. Falou, então, de uma UTI móvel, mas era particular. A supervisora de atendimento que não tinha coragem de insistir, ao telefone, para falar com o deus da Ortopedia, não teve qualquer dificuldade em acionar o deus do transporte, conversas que revelavam boa intimidade. Atendimento bem rápido, dos R$ 2.800 ditos inicialmente, a coisa acabou ficando em R$ 3.500 - os familiares ficam muito vulneráveis, nesses momentos de preocupação com o ente querido -, pagamento em cheque feito no momento do embarque, ainda no período da manhã da quinta-feira. Afinal, o técnico da Radiologia não era um urubu, era apenas um conhecedor dos meandros do comércio vicejante nos arredores da Santa Casa. O deus do transporte foi junto e a "UTI" móvel, bem desfalcada de equipamentos, ainda levou um carona, provavelmente parente do motorista (ou seria do deus do transporte?), além da acompanhante da paciente, uma neta de minha sogra. Viagem, porém, sem sobressaltos, e o deus do transporte manifestou-se impressionado com a qualidade do acolhimento da paciente no hospital de referência em São Paulo.

O A. C. Camargo segue protocolos, ao receber qualquer paciente de outro hospital coloca-o primeiro em uma espécie de isolamento, uma breve quarentena para fazer exames essenciais ao conhecimento do estado do paciente. Não deu outra. Minha sogra estava com um tipo de infecção, muito provavelmente adquirida no hospital de origem. Só depois do correto diagnóstico e início do tratamento medicamentoso foi para a ala de cirurgia, operação que ocorreu em 29/12, UTI até dia 5/01, alta dia 12, 16 dias depois da primeira internação, sem qualquer "intercorrência" exceto o quadro da infecção de origem, palavra do jargão médico. Durante todo o período de internação em São Paulo, nenhum material para procedimentos faltou, desde prosaicas bandagens, curativos especiais para as escaras e até colchãozinho especial, além de fraldões, medicamentos, alimentação, sorvete. Não faltaram no dia-a-dia médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e atendentes de postura rigidamente profissional.

Perfeito? Não. Minha cunhada foi ao ponto: perfeito seria o hospital que tivesse tudo de dois mundos. O de São Paulo, hospital bem equipado e com referencial técnico de seus médicos, enfermeiros e atendentes, coisas que faltam no único hospital de Ubatuba. Elevada tecnologia mas também tratamento humano e digno aos pacientes. Mas com algo deste mundo aqui, um diferencial encontrado na elevada humanidade e no carinho das e dos atendentes de enfermagem da Santa Casa Nosso Senhor dos Passos, que, às vezes na falta de material mas na simplicidade de seus gestos pontuais, de seu sorriso, tratam o paciente como pessoa, como gente, que precisa de soro e remédio, mas que precisa também de atenção humana, conforto e carinho. Anjos bonitos, disse minha cunhada, que viveu a rotina da Santa Casa daqui por quase uma semana.

O mundo não é em preto e branco, tem tons de cinza (bem mais do que os 50 da moda) e muitas, e muitas, cores. A Santa Casa de Ubatuba é um hospital doente, precisa de tratamento, talvez valha a pena mantê-lo e recuperar seu brilho e colorido, mas talvez também seja necessário investir em algo novo, público, de brilhante multicolorido, sem deuses que não respeitam regras gerais, e com cândidos anjos bonitos.

A Cruz Vermelha
Na gestão municipal anterior, de Eduardo César et ingens turba, houve tentativa, desastrada e só parcialmente eficaz, de entregar a gestão da Santa Casa - não sob o regime de intervenção, mas sob o de requisição de serviços - a uma entidade contratada sem que houvesse licitação pública, sem que fosse apurada a competência técnica - e falei sobre isso na época. É que há uma brecha na lei, contratação sem licitação pública de organizações sociais para prestação de serviços pode prescindir de licitação, como foi o caso de Ubatuba com a Cruz Vermelha filial Maranhão, terra da praça Sarney, da escola Sarney, da ilha Sarney e ao menos 29 vezes o sobrenome Sarney em ruas, praças, escolas, equipamentos urbanos públicos. Maranhão, dono (últimos dados divulgados por Estados da Federação) do segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano - IDH (o pior é das Alagoas de Collor e Renan Calheiros, sucessores de Sarney, respectivamente, na presidência da República e na presidência do Senado).

A Prefeitura foi além da simples requisição de serviços, na prática fez uma intervenção que mudou a administração da Santa Casa, mas sem assumir o passivo da instituição - sabe-se que é grande, mas não há informações confiáveis do quanto isso é grande - e sem realizar investimentos compatíveis com as necessidades do hospital.

Bicalho, o nome na Santa Casa, e Vítor Ferreira, o representante maranhense, providos pela Cruz Vermelha do Maranhão de Sarney depois que esta foi contratada para fazer uma auditoria de saúde na Prefeitura de Ubatuba, vieram em 2010 para ensinar como gerir um hospital. Pois bem, a Cruz Vermelha do Maranhão, que recebeu recursos da Prefeitura para gerir o único hospital de Ubatuba esteve, desde agosto de 2012, envolta em sérias denúncias de corrupção, ao ponto de um membro do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o suíço Felipe Donoso, onde é representante das filiais Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, ter dito que "A imagem da Cruz Vermelha mundial foi afetada". Em seus 20 anos de Cruz Vermelha, disse, nunca presenciou algo parecido. Entre várias denúncias, o sumiço do dinheiro arrecadado em 2011 para as vítimas de tragédias na região serrana fluminense, causada pelas chuvas, da fome na Somália por causa da guerra civil, e do terremoto e tsunami do Japão. O dinheiro foi parar na Cruz Vermelha do Maranhão e não tinha chegado às vítimas.

Fato é que o hospital voltou a ser administrado pela Irmandade, provedor Enos Arneiro à frente, mas desde 27 de dezembro de 2012, assessorado por uma espécie de vice-provedor, que voluntariamente se dedica ao trabalho diário, duro, na Santa Casa: Robertson Martins, que nunca reconheceu de público intenção eleitoral, mas foi candidato a vereador pelo PP, na coligação Pra fazer Ubatuba Brilhar. Teve 73 votos e não foi eleito. Que os deuses (não, não o protejam) o respeitem enquanto autoridade administrativa.

- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 05/03/2013
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