quarta-feira, 6 de março de 2013

Deus, problema no hospital de Ubatuba


Deus não é problema exclusivo do único hospital de Ubatuba, é problema geral nos hospitais e ambulatórios médicos. Estamos em Ubatuba. Falemos, então, de Ubatuba e dos deuses de Ubatuba, o rabo norte dos CUIS (Caraguá, Ubatuba, Ilhabela e São Sebastião) do Litoral Norte.

Um dos graves problemas no único hospital de Ubatuba, a Santa Casa Nosso Senhor dos Passos, é deus, ou, pluralmente, os deuses, os doutores de vestes brancas e estetoscópio pendurado no pescoço. Deus, também aqui, em Ubatuba, provoca um temor não apenas o descrito pelas religiões monoteístas, o temor reverencial: provoca temor operacional, provoca medo, causa mesmo pavor em quem está sujeito à sua inquestionável autoridade, titular que é do ato médico e do decorrente "direito" de decidir sobre vida e morte. Deus é uma das personificações do mais sério problema (não é o único problema) do único hospital (e é privado, não é público) de Ubatuba, que é o problema sistêmico. O hospital está doente, e não há maquiagem de "reforma" da pintura que dê conta, porque o problema não é apenas pontual, não é nem neste detalhe nem naquele detalhe, é problema sistêmico. É problema de gestão, gestão clínica, gestão financeira, gestão de pessoal, gestão operacional. Contudo, não se trata de um hospital particular visando ao lucro. É uma entidade para "dar o coração aos miseráveis", uma Santa Casa de Misericórdia nos moldes de antiga tradição portuguesa, que ora brilha, ora sofre de obscurecimento total, mas que está em Ubatuba, cujo destino, como o de todo o município, destino decidido nas recentes urnas, é brilhar. Se não a instituição privada em si, há que ter em Ubatuba, e melhor que seja municipal, há que ter um hospital a brilhar.

Houve tentativas, a administração municipal anterior entregou a administração do hospital à Cruz Vermelha - filial Maranhão (há comentário sobre isso no final desta matéria). A administração da Cruz Vermelha mudou algo, mas pouco, no hospital daqui. Foi sucedida, ainda durante o mandato de Eduardo César et ingens turba, por uma administração já agora da Irmandade mantenedora, que reverteu parte das mudanças e procura descascar o abacaxi do jeito canhestro que consegue.

Os alertas e gritos pedindo socorro há anos se repetem, e se repetem, vindos de familiares de pessoas que buscam atendimento médico na Santa Casa Nosso Senhor dos Passos, de Ubatuba. Ainda agora em fevereiro, no dia 16, a jornalista Luana, movida pela indignação, relatou o desespero dela e dos familiares de sua irmã, já devastada pela morte de um bebê ainda no útero. Internada dia 14, o triste parto ocorreu no domingo, dia 17, e o enterro do bebê foi na segunda-feira, dia 18, mesmo dia em que ela recebeu alta. Mas o atendimento só realmente andou depois do grito de socorro e de o provedor do hospital tomar pé do caso, prestando melhores informações à família. Naquele fim de semana fatídico, disse a mulher internada, vários bebês morreram. A Provedoria informou que foram três parturientes de oitavo mês de gestação, que deram entrada no hospital com seus fetos já em óbito. Num específico caso, uma das parturientes estava grávida de gêmeos, um em óbito e outro que sobreviveu, nascido na 35ª semana da gestação. Foi mesmo um fim de semana triste.

Em hospitais bem estruturados e bem dirigidos o problema também existe, mas pontualmente, não sistemicamente. Sempre haverá os deuses. Há feudos, mas os doutores feudais respeitam as regras gerais desses hospitais. Aqui gerem os feudos acima das regras gerais.

Idosa, minha sogra sofreu uma queda, na noite do dia 22, e foi internada no hospital de Ubatuba no inicio da madrugada da antevéspera do Natal de 2012. Período complicado para o SAMU, plena temporada, muitos casos e rodovia e ruas lotadas, hospital cheio. Apesar da demora, o atendimento do SAMU, sob chuva fina, foi impecável. O plantonista do hospital providenciou internação e raio-X, chapa imediatamente interpretada pelo técnico da Radiologia, já que o deus da Ortopedia não estava lá: fratura de colo do fêmur, coisa para cirurgia e prótese. O técnico logo adiantou que a operação não poderia ser feita no único hospital de Ubatuba, que não tinha UTI, e que haveria necessidade de remoção. E tascou, sem o menor pudor, que poderia obter esse transporte, a preço mais módico do que aquele que em algum momento seria oferecido. Causou engulhos, naquele momento, todos preocupados com a saúde da idosa familiar, a oferta do técnico, algo assemelhado a urubu farejando carniça. Só depois, com o desenrolar dos fatos, foi que refletimos que aquela aparentemente nojenta abordagem significava, na verdade, conhecimento da realidade do único hospital de Ubatuba e uma oferta de alternativa. Há um comércio indecente de transporte de pacientes vicejando aqui.

Naquela madrugada e em toda a manhã seguinte nada de o titular do feudo da Ortopedia exercer o sagrado e exclusivo de deus, o ato médico, e examinar a paciente. Nada de conseguir de enfermeira e técnicas de enfermagem que negociassem a vinda do doutor: "ele fica bravo se a gente ficar telefonando, e aí demora mais ainda". Deus colérico, esse. E coube ao atendente de enfermagem especializado em Ortopedia, o auxiliar de deus, naquele dia seguinte, realizar sem supervisão o ato médico de "alinhar" a perna de minha sogra, procedimento doloroso para recolocar na posição anatômica adequada o quebrado e deslocado fêmur, algo que talvez a equipe do SAMU já tivesse feito, caso dispusesse de um médico. Mas não dispunha, e seguiu o protocolo, pois há procedimentos que constituem ato médico ou, no mínimo, exigem supervisão presencial do deus titular do ato médico.

Um deus menor que não questiona o deus maior, outro deus, já velhinho, mas simpático, plantonista, naquele dia deu uma olhada na paciente e na radiografia e pediu outra, pois disse não ter visto a fratura diagnosticada pelo não-médico técnico da Radiologia. Pois bem, não foi necessário novo raio-X, à tarde o deus maior constatou que, sim, havia fratura, necessidade de cirurgia, prótese, UTI pós-cirurgia, fisioterapia e tudo o mais, nada disso possível no único hospital de Ubatuba, nesse caso uma central de despacho para outros hospitais. As alternativas, via SUS, disse a supervisora de atendimento, com a qual só conseguimos contato na segunda-feira, eram os hospitais de Taubaté e São José dos Campos, montanha acima, mas que essas providências só poderiam acontecer a partir de quarta-feira, após o feriado do Natal. Nós, familiares, tratamos de buscar alternativa, um outro hospital particular mas que, em casos específicos, atende pelo SUS, um hospital de referência em Oncologia, e minha sogra já tinha sido atendida nele por conta dessa referência. Um hospital completo, bem administrado, com porta única de entrada e sem discriminar atendimento particular, por convênio com planos de saúde ou SUS. Claro que o rico paga muito, o plano de saúde e o SUS fazem o pagamento-padrão contratado, mas, exceto pela hotelaria, o hospital não discrimina ninguém, o atendimento médico é o mesmo para todos. Trata-se do Hospital A. C. Camargo, conhecido como Hospital do Câncer, mantido pela Fundação Antônio Prudente, em São Paulo. O atendimento por telefone foi impecável, mas fomos informados de que somente o médico do hospital de origem poderia negociar a vaga de minha sogra como transferência, pelo SUS.

Reiteramos com a supervisora de atendimento que acionasse o médico e buscasse vaga no A. C. Camargo, do qual minha sogra era, há anos, paciente atendida pelo SUS. Mas nada da supervisora falar com o deus da Ortopedia, o único que poderia fazer o encaminhamento para o hospital de São Paulo. Minha cunhada conseguiu pegá-lo pelo rabo, quando já estava de saída da Santa Casa sem ter passado, pelo segundo dia consecutivo, pelo quarto da paciente, apesar de todos os pedidos e recados deixados na enfermagem do andar, de que os familiares precisavam conversar com ele. Minha cunhada conseguiu então relatar a ele as gestões com o A. C. Camargo, das quais o deus da Ortopedia nada sabia - a supervisora de atendimento não tinha feito contato com ele. Deus não era onisciente, afinal, e nem um deus insensível. Ciente do risco de escaras, havia determinado, no terceiro dia de internação, que fosse transferida para leito em apartamento dotado de ar-condicionado, prescrevendo o uso de um colchãozinho tipo "caixa de ovos", umas pequenas pirâmides de espuma. Claro que o hospital não tinha isso disponível e precisamos comprar no comércio ali por perto do hospital, mas nesse intervalo uma prestativa enfermeira (daqueles anjos bonitos) providenciou um, ainda que encapado com um plástico. Bem, as escaras deram as caras, afinal.

Não era, o deus, insensível, e, assim que soube das gestões com o A. C. Camargo, com toda a boa vontade e empenho fez os telefonemas necessários e autorizou a transferência, na tarde do quarto dia de internação de minha sogra. Na manhã do quinto dia, minha esposa recebeu, em casa, um telefonema do Hospital A. C. Camargo, dizendo que a vaga estava disponível, mas que não conseguiam contato com a tal profissional, a supervisora de atendimento, responsável da Santa Casa de Ubatuba para tratar dos detalhes. Mais um problema sistêmico, atendimento telefônico mais do que sobrecarregado. Minha cunhada, a acompanhante de minha sogra, foi avisada por celular dessa dificuldade e tratou de fazer gestões pessoais junto à profissional da Santa Casa para que contatasse o setor responsável do Hospital de destino.

Bem, a transferência. Era coisa para os cuidados da supervisora de atendimento, transferência pelo SUS. Mas as ambulâncias do SUS só estariam de volta no início da noite, explicou. E não viajavam à noite. Talvez fosse possível na manhã da sexta-feira, seguindo a ordem de requisições - e a ordem de requisição da minha sogra sabe-se lá qual era. Falou, então, de uma UTI móvel, mas era particular. A supervisora de atendimento que não tinha coragem de insistir, ao telefone, para falar com o deus da Ortopedia, não teve qualquer dificuldade em acionar o deus do transporte, conversas que revelavam boa intimidade. Atendimento bem rápido, dos R$ 2.800 ditos inicialmente, a coisa acabou ficando em R$ 3.500 - os familiares ficam muito vulneráveis, nesses momentos de preocupação com o ente querido -, pagamento em cheque feito no momento do embarque, ainda no período da manhã da quinta-feira. Afinal, o técnico da Radiologia não era um urubu, era apenas um conhecedor dos meandros do comércio vicejante nos arredores da Santa Casa. O deus do transporte foi junto e a "UTI" móvel, bem desfalcada de equipamentos, ainda levou um carona, provavelmente parente do motorista (ou seria do deus do transporte?), além da acompanhante da paciente, uma neta de minha sogra. Viagem, porém, sem sobressaltos, e o deus do transporte manifestou-se impressionado com a qualidade do acolhimento da paciente no hospital de referência em São Paulo.

O A. C. Camargo segue protocolos, ao receber qualquer paciente de outro hospital coloca-o primeiro em uma espécie de isolamento, uma breve quarentena para fazer exames essenciais ao conhecimento do estado do paciente. Não deu outra. Minha sogra estava com um tipo de infecção, muito provavelmente adquirida no hospital de origem. Só depois do correto diagnóstico e início do tratamento medicamentoso foi para a ala de cirurgia, operação que ocorreu em 29/12, UTI até dia 5/01, alta dia 12, 16 dias depois da primeira internação, sem qualquer "intercorrência" exceto o quadro da infecção de origem, palavra do jargão médico. Durante todo o período de internação em São Paulo, nenhum material para procedimentos faltou, desde prosaicas bandagens, curativos especiais para as escaras e até colchãozinho especial, além de fraldões, medicamentos, alimentação, sorvete. Não faltaram no dia-a-dia médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e atendentes de postura rigidamente profissional.

Perfeito? Não. Minha cunhada foi ao ponto: perfeito seria o hospital que tivesse tudo de dois mundos. O de São Paulo, hospital bem equipado e com referencial técnico de seus médicos, enfermeiros e atendentes, coisas que faltam no único hospital de Ubatuba. Elevada tecnologia mas também tratamento humano e digno aos pacientes. Mas com algo deste mundo aqui, um diferencial encontrado na elevada humanidade e no carinho das e dos atendentes de enfermagem da Santa Casa Nosso Senhor dos Passos, que, às vezes na falta de material mas na simplicidade de seus gestos pontuais, de seu sorriso, tratam o paciente como pessoa, como gente, que precisa de soro e remédio, mas que precisa também de atenção humana, conforto e carinho. Anjos bonitos, disse minha cunhada, que viveu a rotina da Santa Casa daqui por quase uma semana.

O mundo não é em preto e branco, tem tons de cinza (bem mais do que os 50 da moda) e muitas, e muitas, cores. A Santa Casa de Ubatuba é um hospital doente, precisa de tratamento, talvez valha a pena mantê-lo e recuperar seu brilho e colorido, mas talvez também seja necessário investir em algo novo, público, de brilhante multicolorido, sem deuses que não respeitam regras gerais, e com cândidos anjos bonitos.

A Cruz Vermelha
Na gestão municipal anterior, de Eduardo César et ingens turba, houve tentativa, desastrada e só parcialmente eficaz, de entregar a gestão da Santa Casa - não sob o regime de intervenção, mas sob o de requisição de serviços - a uma entidade contratada sem que houvesse licitação pública, sem que fosse apurada a competência técnica - e falei sobre isso na época. É que há uma brecha na lei, contratação sem licitação pública de organizações sociais para prestação de serviços pode prescindir de licitação, como foi o caso de Ubatuba com a Cruz Vermelha filial Maranhão, terra da praça Sarney, da escola Sarney, da ilha Sarney e ao menos 29 vezes o sobrenome Sarney em ruas, praças, escolas, equipamentos urbanos públicos. Maranhão, dono (últimos dados divulgados por Estados da Federação) do segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano - IDH (o pior é das Alagoas de Collor e Renan Calheiros, sucessores de Sarney, respectivamente, na presidência da República e na presidência do Senado).

A Prefeitura foi além da simples requisição de serviços, na prática fez uma intervenção que mudou a administração da Santa Casa, mas sem assumir o passivo da instituição - sabe-se que é grande, mas não há informações confiáveis do quanto isso é grande - e sem realizar investimentos compatíveis com as necessidades do hospital.

Bicalho, o nome na Santa Casa, e Vítor Ferreira, o representante maranhense, providos pela Cruz Vermelha do Maranhão de Sarney depois que esta foi contratada para fazer uma auditoria de saúde na Prefeitura de Ubatuba, vieram em 2010 para ensinar como gerir um hospital. Pois bem, a Cruz Vermelha do Maranhão, que recebeu recursos da Prefeitura para gerir o único hospital de Ubatuba esteve, desde agosto de 2012, envolta em sérias denúncias de corrupção, ao ponto de um membro do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o suíço Felipe Donoso, onde é representante das filiais Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, ter dito que "A imagem da Cruz Vermelha mundial foi afetada". Em seus 20 anos de Cruz Vermelha, disse, nunca presenciou algo parecido. Entre várias denúncias, o sumiço do dinheiro arrecadado em 2011 para as vítimas de tragédias na região serrana fluminense, causada pelas chuvas, da fome na Somália por causa da guerra civil, e do terremoto e tsunami do Japão. O dinheiro foi parar na Cruz Vermelha do Maranhão e não tinha chegado às vítimas.

Fato é que o hospital voltou a ser administrado pela Irmandade, provedor Enos Arneiro à frente, mas desde 27 de dezembro de 2012, assessorado por uma espécie de vice-provedor, que voluntariamente se dedica ao trabalho diário, duro, na Santa Casa: Robertson Martins, que nunca reconheceu de público intenção eleitoral, mas foi candidato a vereador pelo PP, na coligação Pra fazer Ubatuba Brilhar. Teve 73 votos e não foi eleito. Que os deuses (não, não o protejam) o respeitem enquanto autoridade administrativa.

- texto publicado originalmente na Revista Eletrônica O Guaruçá, em 05/03/2013
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