segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O Boi de Conchas


Como cheguei há pouco de fora, ainda não conheço direito o sistema de saúde pública de Ubatuba. Talvez esta seja a oportunidade de uma consulta com a Dra. Mônica, no Centro de Saúde do Perequê-Mirim. Talvez ela dê jeito, com seus remédios e medicinas. É que estou de queixo caído. Caiu-me, ao ver, ler e ouvir o Auto do Boi de Conchas. Uma exagerada percepção? Tenho comigo que a resposta é negativa.
Carrego uns certos preconceitos. Um deles é quanto à qualidade de artistas locais, os da terra, qualquer seja a terra. Ao longo da vida e, mais recentemente, participando do convívio de minhas filhas com seus amigos e colegas de escola, cultivei o preconceito quanto a artistas da terra, os violonistas, os guitarristas, os bateristas, as bandas de rock de garagens, o tchac-tchac. Alguns desses artistas até renderam CDs, dos quais, um ou outro, patrocinados por gravadoras ou "gravadoras", conforme se queira. A face mais visível desse preconceito relaciona-se com o tchac-tchac, essa excrescência musical tanto quanto são (ao meu ver) excrescências visuais e ecológicas as "Varandas" de Ubatuba, poluindo e rasgando as encostas que deveriam permanecer Mata Atlântica.
Assim, dentro dessa visão preconceituosa, fui à banca da praça Treze de Maio buscar o "Auto do Boi de Conchas". Rompido aquele infame (mas necessário) plástico que recobre o fascículo, balançou-se-me a visão preconceituosa. O primeiro contato foi com uma ilustração datada de 2004, de Françóis Guérin (nem imagino quem seja). Sua (des)proporção nos corpos e objetos e o colorido aquarelado conferem ao tema uma expressão de autêntico movimento, mas congelado pelo olhar do artista, tanto quanto uma câmera (dessas hoje comuns, digitais) congela a luz num momento perene. Creio que quase (à quarta olhada) reconheci o chapéu do Julinho (que ainda não conheço pessoalmente) num dos personagens retratados. Fiquei, é certo, confuso quanto às (o quê?) esferas (isso mesmo?) luminosas na encosta do morro, mas o próximo carnaval, certamente, desvendará isso. Faço parêntese: não gosto de carnaval, confesso, penitencio-me humildemente. Mas uma vez, faz anos, no Rio de Janeiro em pleno carnaval - ao qual não fui assistir na avenida-passarela - encantei-me com a garotada dos bairros e seu bate-bola autêntico, espontâneo, aquele que fica longe das câmeras da Globo e dos passistas de passarela. E, no entanto, no de 2010 estarei na - onde? onde? cheguei há pouco de fora e não sei - avenida de Ubatuba onde será o desfile.
O segundo contato foi com com o texto da Lenda tal como contada por vovô e levada ao público pelo Julinho, bem como a explicação do porquê de Ratambufe, que a consulta ao Houaiss on line registrou assim: "A palavra ratambufe não foi encontrada". Depois, O Começo, O que Fazemos, e as fotos e textículos (oh, por favor, não confundam U com Alça) elucidativos - mas, palavra, não vi Bado Todão. Ao depois, mas já ouvindo em meu precário som de fones de ouvido direto do computador, o Musical (lenda e introdução), Sumidouro, Seres da Lua Cheia, e por aí vai, e vendo as ilustrações e lendo as letras, fui apresentado a todo o Auto, à estória, à história, ao conjunto todo, e, claro, à música.
Ah, a música! Tenho comigo que há exigentes e indigentes em música e toda uma gama entre eles. Há os que são exigentes, no extremo do espectro, e negam (e argumentam muito bem) valor a Villa-Lobos. Há os que são indigentes, no outro extremo, e não negam valor a nada que lhes caia nos ouvidos, em geral acostumados a - nessa ordem, mas não necessariamente - música comercialesca, sertanejos fajutos, tudo aquilo que dura duas semanas nas rádios comerciais. Procuro, peripateticamente (a virtude não está nos extremos), o que se aproveita aqui, ali e acolá. Mas preconceito é foda (oooopps, f***, em linguagem decente) e fico incomodado com o tchac-tchac. Ah, a música do Auto do Boi de Conchas! Tem sim, um suave, um outro tchac-tchac, que não é aquele do desbunde do baterista, que, quando de ego inflado, faz a indefectível sequência (saudades do trema...) alucinante, progressiva e retumbante. Aos meus ouvidos tal sequência do ego inflado é idêntica a tudo o que veio antes e ao que virá depois. Mas no Auto do Boi não é assim. Ouço Destino do Boi e ouço ritmo, percussão, mas não tchac-tchac: ouço a pureza de instrumentos, e vozes, e um assovio, e magnífico afinado coral, e, sim, ritmo, saído diretamente da música forma e conteúdo.
Abre-se, então, a questão principal, estética, filosófica, da estética musical, e do infindável debate entre forma e conteúdo em arte, qualquer arte, mas especialmente em arte-música. Onde a dialética entre forma e conteúdo se dá de forma um tanto bizarra: o formal, em arte, não é uma estrutura abstrata, vazia, onde passa a residir um conteúdo concreto, mas também não é só conteúdo, nem matéria, a matéria dos signos musicais e dos instrumentos como o desconhecido ratambufe. A estética musical, como de resto qualquer estética, não é universal e atemporal. Fosse, trocar-se-ia "Pela ética na política" que ouvíamos e aplaudíamos, por uma formulação simples assim: "Pela estética na política", pois mentir, enganar e roubar são, simplesmente, coisas feias, ou não-estéticas, ou, para quem preferir, valores estéticos de sentido negativo. Ontem, animados, falávamos em ética. Hoje, meramente em estética na política. E, no entanto, não há lá muita propriedade em falar em ética em arte, mas, talvez, tão-somente, em estética. Ou não? É ética a arte do tchac-tchac, quando cativa o conhecido e estatístico ouvido médio contemporâneo? E, assim, aproveita-se, comercialmente, do que vende? Minha mulher e minha filha Elka, esta fã incondicional da mineira Ceumar, advogam, advogadas que não são, psicóloga uma e bióloga outra, que sem colocar o indigitado tchac-tchac o CD "não vende". Há que obtemperar. Ceumar vendeu, e bem, seu último CD ao som puro de seu violão e algum bem orquestrado acompanhamento, sem o tchac-tchac. Assim entendo a estética musical de "O auto do boi de conchas": não se rendeu ao comercialesco tchac-tchac, ainda que tenha, muito bem colocada, a percussão que inclui percussão clássica propriamente dita e a "muderna" (aqui pode-se falar em "pudê...") bateria, sem o famigerado apelo ao ego do baterista militante. Em uma ou duas palavras, a produção estética musical do "Auto" mantém uma pureza fiel ao espírito do que quer resgatar, a manifestação autêntica desta gente, da nossa gente (já então me incluo), não-comercial e sim folclórica. O valor que disso advém, creio, não será medido pela milhagem de vendas, mas apenas pelo prazer imedível (ministro não podia falar em imexível?) de cada um dos privilegiados que tiverem acesso ao fascículo e ao SMD de "O Auto do Boi de Conchas".
Por final, "Ora, apaga-se a luz dos que não têm o sonhar..." (Abate final). Nós temos o que sonhar. Até mesmo com as mangueiras que, então, um dia, haverão de muito frutificar em Ubatuba, resgatada sua adormecida vocação para o que é das gentes e da terra, os costumes, o linguajar, a comida, o artesanato e até - desabafo pessoal - o convívio com a praga que é esse bichinho díptero do qual, já no século 16, reclamava Anchieta: o borrachudo.

- texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruçá

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