quarta-feira, 23 de junho de 2010

A Bandeira do Divino e a jiçara


O som da rabeca, acompanhando as cantorias da romaria do Divino Espírito Santo, chegou aqui em casa. Foi na manhã de domingo, dia 16, no Perequê-Mirim. Bem, não foi exatamente aqui: foi na casa da frente, da dona Celeste: rabeca, violão, vozes masculinas e femininas, os romeiros levaram a Bandeira do Divino para o interior da casa, que foi abençoada.
Dona Celeste Augusta de Oliveira Maia nasceu em Redenção da Serra, onde, 60 anos atrás, casou-se com com o Seu José Francisco Maia, de Pindamonhangaba. O casal morou em Itu, São José dos Campos e Taubaté, antes de mudar-se para a Enseada, em 1963. Dona Celeste e Seu José ficaram pouco tempo na Enseada: quando o filho Osvaldinho ainda era um bebê mudaram-se para o Perequê-Mirim, onde se estabeleceram definitivamente. Muito católica, Dona Celeste sempre participou das atividades da Igreja e da comunidade, e muitos aqui do Perequê-Mirim a consideram como uma verdadeira mãe. É muito respeitada e querida aqui, dona Celeste, hoje adoentada. Teve 14 filhos de seu casamento com Seu José, dos quais oito estão vivos. O casal sofreu a penúria de um sistema de saúde muito deficiente, que ceifava a vida das crianças numa proporção muito elevada. Felizmente hoje não é mais assim.
O lutiê de rabeca destas terras, Mário Gato, acompanhou a Peregrinação da Bandeira do Divino. Se em abril de 2007 o folclorista Nei Martins disse que se tratava da 141ª Peregrinação, então a Bandeira da pomba branca adornada com sete fitas coloridas está, pelo 143º ano, visitando os bairros de Ubatuba. Mário Gato aprendeu a arte diretamente do mestre Ricardo Nunes Pereira, que faleceu recentemente. Felizmente, não se perdeu a técnica nem a memória da rabeca, instrumento introduzido na península ibérica pela cultura árabe e trazida para o Brasil pelos portugueses. A Fundart tem página sobre isso. O Julinho Mendes escreveu sobre rabeca e rabequeiros em março de 2006 e agorinha, em abril de 2010. Os arquivos do portal UOL conservam uma página da edição 197 do jornal A Semana, que conta um pouco da história do mestre Ricardo.
Mário me falou um pouco sobre a tradição do Divino. O transporte é provido pela Fundart e os peregrinos do Divino, que não são esmoleres, aceitam a esmola oferecida de coração pelas casas onde passam: mantêm a dignidade e, com ela, a tradição, pois antigamente a Bandeira saía pelos bairros em toda a orla e os peregrinos não tinham como voltar para casa, precisavam comer e pernoitar. Ele disse que a esmola pode ser um alimento, algum dinheiro, ou muito dinheiro. E sonhou: um milhão de reais. Por que não uma esmola desse tamanho? Seria possível, com um valor dessa ordem, instituir um programa permanente de ensino da arte da rabeca e atividades de preservação da riqueza folclórica presente nas festividades religiosas caiçaras. E mais um mundo de coisas. Pena que o último mecenas de expressão nestas terras, o Ciccillo, seja hoje apenas uma lembrança.
Jiçara
Ouvimos outros sons interessantes no domingo. É que fomos, eu, a Marlene e minha sogra, Irene, à 2ª Festa da Jiçara, no Sertão do Ubatumirim, realizado pelo IPEMA – Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica, em parceria com as comunidades, com a Akarui, Fundação Florestal, através dos Núcleos Picinguaba e Santa Virgínia do Parque Estadual da Serra do Mar, das Prefeituras de Ubatuba e de São Luiz do Paraitinga. E com patrocínio da Petrobras, que contribuiu para cobrir os custos, estimados em uns 12 mil reais por Lenina, a assessora de comunicação do IPEMA.
Não, não está errado: é jiçara mesmo. O Instituto, que se dedica à preservação ambiental, deu nome oficial à festividade optando pelo vocábulo "juçara", palmeira nativa da Mata Atlântica cujo nome científico é Euterpe edulis e que demora uns seis anos para começar a produzir. Acontece que muitos caiçaras têm a mania de falar "jiçara". Até falam em "juçara" para os "estrangeiros", mas recusam-se a deixar que se perca o familiar som "jiçara".
Bolinho de inhame com jiçara, licor da jiçara do pessoal da barraca de São Luiz do Paraitinga, mel de Saci com gosto de jiçara, frango com jiçara, café com jiçara, bolo de laranja com cobertura de calda de jiçara, um mundo culinário dedicado à jiçara, em onze barracas das comunidades participantes, de Ubatuba, São Luiz do Paraitinga, Paraty. Todos comemorando a safra da jiçara, que rendeu umas duas toneladas aqui, este ano. Houve troca de sementes e mudas da planta entre as comunidades, troca de experiências culinárias e até de tecnologia de despolpamento, com uso de uma máquina feita à base de motor, polia e com estrutura de canos de ferro.
Mas a alegria da festa foram as cantorias e as danças. Não vimos todas. Marlene registrou os Tambores da Fazenda na dança do coco, com o magnífico vocal da Graziele. O Grupo de Samba do Quilombo do Campinho, de Paraty (RJ) levantou poeira. A festa teve bingo, teve rabeca, adentrou a noite, muito animada.
Não consegui conversar com o presidente do IPEMA, Alex. Não estava presente, não mora mais em Ubatuba. Responde pelo Instituto o secretário executivo Marcelo Bueno, mas também não consegui falar com ele. Quem deu informações foi a assessora de comunicação Lenina. Indaguei a razão de ter sido contratado como locutor um jornalista de São Sebastião, Ivan Quadros, que também tem programa em rádio de Caraguatatuba, patrocinado pela Petrobras. Por que não alguém da comunidade (mesmo que fale "jiçara"), ou, mesmo, de Ubatuba, onde sustentavelmente se fecha o fluxo do dinheiro? Lenina disse que foi uma "emergência", que os de Ubatuba (som, equipamento, e locução) não estavam disponíveis, talvez comprometidos com outros eventos.
Bem, não chegou a confundir Jesus com Genésio, mas caiçara com carioca, coxinha de juçara em vez de frango com jiçara, coração de bananeira, aquela ponta do cacho, com "coração de banana", essas confusões aconteceram. Fora aquela palavrinha difícil, um dos parceiros, Akarui.  Acontece! E talvez seja o ônus de contar com o patrocínio da Petrobras, que distribui verbas por toda a região, mas costuma se esquecer de Ubatuba.
A 2ª Festa da Jiçara ainda teve rabeca. Em Portugal já está praticamente extinta a cultura da rabeca, substituída pelo violino comum. Quem sabe não percamos também para o violino comum o lugar que, teimosamente, hoje ainda é da rabeca caiçara, na medida em que passemos a aceitar juçara para designar a jiçara...

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruça  

19/05/2010

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