quarta-feira, 23 de junho de 2010

Ubatubanidade, coisa de cidadezinha


Julinho sisqueceudimiavisá. Fim de feriado de 1º de maio, bem num sábado, solito aqui em casa, só não fiquei a ver navios porque a controversa temporada deles já acabou. Fiquei sabendo que teve, que o Julinho foi, porque vi foto no Ubatuba Víbora: 1º Festival de Viola “Luiz Ernesto Kawall”. As coisas serão agora diferentes, não estarei mais sozinho, solitário. Marlene, finalmente, chegou de vez, trazendo os dois gatos, a Elis e o Goya (a cachorrinha vira-lata Toca já estava aqui).
Ubatuba. Ubatubâncias, as citadas por Leão Machado e pelo Julinho Mendes, mas também ubatubanidade, que combina com urbanidade. E rima com solidariedade. Chegou, enfim, a mudança capitaneada pela Marlene. Caminhão-baú daqueles bem altos, trucado (três eixos, dez rodas, grandão), placas da cidade de origem, Assis, não conseguiu passar pela rua do poste. É assim, "rua do poste", como é conhecido pelos motoristas dos caminhões que coletam lixo, o trecho da rua da Mangueira que dá acesso ao Cantinho que Marlene e eu temos, aqui no pé do morro do Funhanhado, nesta Ubatuba que é o paraíso a construir. Alguns caminhões passam, outros não. O bauzão não passou. Desolado, o motorista avisou que não era falta de perícia, mas impossibilidade mesmo. Pura verdade, acreditem. Então, não teve jeito: perdi a conta, foram mais de 18 curtas viagens de camionete velha naquele pequeno quarteirão da "rua do poste", para carregar e descarregar bugigangas, móveis, mesa de bilhar das meninas, e caixas e mais caixas de tudo e de livros, e plantas e livros, e televisão e livros, e utensílios e livros, e colchões e uns livros, e ventiladores e umas penas de pavão, que adornam vaso que acabou ficando no canto da sala.
Num exercício de ubatubanidade, os muitos usuários da rua da Mangueira, metade da população do Perequê-Mirim, esperaram pacientemente o ajeita-aqui-ajeita-ali do caminhão e da camionete na rua estreita, antes de poderem seguir seus trajetos. Fim de tarde, fim de aulas na Escola Municipal Maria da Cruz Barreto (sobrenome do Paulinho, filho dela, meu vizinho da esquerda), pais e mães e carros e bicicletas e gente a pé esperando o andar da carruagem da mudança, andar demorado. Mas com ubatubanidade, respeito, simplicidade e paciência.
Ubatubanidade: por conta dos imprevistos, o caminhão da mudança chegou com dois dias de atraso e com um motorista e só um dos dois prometidos funcionários-carregadores. Mas, como não passava pela rua do poste, ubatubanidade: o Osvaldinho, meu fiel amigo, vizinho e caiçara, filho da dona Celeste, num instante juntou o Samuel e mais uns caiçaras legítimos que, desinteressadamente, pegaram o touro Ratambufe à unha e deram conta do recado, inclusive da incrivelmente pesada mesa de bilhar. É das pequenas, simples, mas tem uma ardósia polida de uns 8 centímetros de espessura, que pesa, e pesa. Ubatubanidade, minhas vizinhas Zélia e Sandra, uns dois dias de muito trabalho, junto com minha sogra Irene e com a Marlene, desmontando caixas e caixas e organizando e limpando e organizando. Todos com sorrisos e bom humor estampados na face, em completo contraste com o completo traste dessas horas, eu, euzinho, numa tensão e mau-humor ímpares, cara amarrada - é que sou assim, mas só tenho cara feia, não mordo. Ainda preciso aprender ubatubanidade, faz parte do meu processo de caiçara em construção.
Ubatubanidade: se for neologismo, reivindico autoria. É coisa de cidade que não é mais pequena cidade, que não é cidadezinha, mas que preserva aquilo que de melhor têm as pequenas cidades, as cidadezinhas, sejam as do Interior caipira, sejam do Litoral caiçara. Um certo e indefinido sentimento de comunidade, de urbanidade, de solidariedade, de pegar emprestado com o vizinho um pouco de açúcar, uma enxada, uma ferramenta qualquer, uma mangueira de água, ajudar na mudança, sorrir. Nossa grande pequena cidade é também feita disso.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruça 
 14/05/2010

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