A Câmara Municipal de Ubatuba aprovou, em sua sessão de terça-feira, dia 13 de abril, algo inacreditável: uma espécie de perdão de dívidas de IPTU e a isenção futura do tributo para um imóvel locado pelo Legislativo, que é de um proprietário particular. O projeto de lei, de autoria do prefeito Eduardo Cesar, não teve debates na sessão, apenas votação e aprovação, com dois votos contrários, dos vereadores Pastor Claudinei (PSC) e Rogério Frediani (PSDB).
Dou-me provisoriamente por vencido. Não consegui me informar se o IPTU do prédio locado da Câmara está em dia ou não, quais são os termos do contrato de locação, nem a íntegra do projeto aprovado. Ainda há pesquisas a fazer.
O projeto de isenção era, provavelmente, o mais importante da Ordem do Dia, porque, logo em seguida, começou o esvaziamento do plenário. Depois da primeira hora, parece, há uma discreta debandada dos vereadores. O Pastor Claudinei foi o primeiro a sair: tinha um evento importante em sua igreja. Conversei rapidamente com ele na saída, para perguntar a causa da voz forte e veemente dizendo "rejeito" ao projeto de isenção do IPTU para o imóvel ocupado pela Câmara. Claudinei considerou que, se fosse o caso de entidade assistencial, a história seria outra. Mas o projeto aprovado concede isenção a um particular, o que, para ele, é inaceitável, pois o tributo reverte em benefício de toda a população e todos os particulares têm o dever de pagá-lo.
Outros vereadores foram depois saindo de fininho, ao ponto de se chegar a uma parte informal, a "Sessão Bate-Papo", porque, com a inexistência de quorum, a sessão ordinária já estava regimentalmente encerrada. Foi nessa parte da sessão, com palavra livre aos vereadores, que o vereador residente na Maranduba, Rogério Frediani, abriu o coração e lavou a alma, mesmo, conforme suas palavras, sob o risco de cassação de seu mandato: "essas coisas a gente não costuma falar ao microfone".
Disse estar inconformado com as novas regras para uso dos veículos oficiais da Câmara, que não mais poderão ser utilizados para transportar pacientes para realização de exames e procedimentos médicos. Afirmou que não apenas ele, mas os demais vereadores, se utilizavam dessa prática, quando da ocorrência de algum caso urgente, de "pessoas que votaram em nós ou que não votaram em nós". Mencionou que quando em campanha eleitoral para pedir votos, os vereadores são movidos pelo sentimento e apelam, junto aos eleitores, para sentimentos, de amizade, de companheirismo. Como então, indaga, depois de eleitos, podem deixar de se sensibilizar com a necessidade de quem votou?
Afirmou que a instalação do AME (Ambulatório Médico de Especialidades) em Caraguatatuba resolveu um problema, mas causou outro. O AME foi inaugurado dia 16 de janeiro, em Caraguatatuba, no bairro Indaiá, o que gerou nova e significativa demanda de transporte de pacientes.
Ante uma sugestão do presidente da Mesa, vereador Ricardo Cortes (DEM), de que se utilizasse um ônibus para levar os pacientes à AME, Frediani citou a experiência negativa do "trem da alegria", apelido dado ao ônibus que faz trajeto entre Ubatuba e São Paulo, para transportar pacientes a hospitais da Capital. O ônibus sai de Ubatuba bem de manhãzinha, faz várias paradas para recolher pacientes e acompanhantes, e, na volta, parte da Capital bem à tarde, sujeitando os doentes e seus acompanhantes a um dia muito estafante.
Mencionou a inexistência de ambulâncias para transporte dos pacientes em estado mais grave para hospitais do Vale do Paraíba, o que levou a um aparte do vereador José Americano (PPS), que citou já estarem no Município as ambulâncias para uso do Serviço de Atendimento Médico de Urgência, o SAMU. Essa unidade ainda está em fase de instalação, e os veículos ainda não podem ser utilizados, por causa do processo para regularizar toda a documentação. Citou também ajustes entre as Secretarias da Educação e da Saúde, de forma a viabilizar o uso de veículos de transporte escolar para o transporte de pacientes.
Frediani contestou, dizendo e repetindo que "está errado": a legislação é expressa em garantir 25% do orçamento à Educação, não se admitindo desvios, como a utilização de recursos da Educação em outras áreas.
Ao final, Rogério Frediani disse não temer por seus atos, "o que está certo está certo", e alfinetou: "eu não vou mudar de Ubatuba". Disse também que a Câmara Municipal é um Poder, não cabendo passar por constrangimentos, numa referência à publicação de recomendações do Ministério Público.
Comentário
Algum tipo de fim está próximo: o Ministério Público (MP) de Ubatuba concedeu 30 dias, a contar de 18 de março, para a adoção de providências pela Câmara. O 3º promotor público de Ubatuba, dr. Percy Cleve Kuster, enviou dia 18 de março para a Câmara Municipal, e para publicação em jornais, ofício sobre "Acompanhamento das Medidas de Controle de Acesso e Uso de Equipamentos da Câmara Municipal de Ubatuba". Agiu pela Promotoria de Justiça do Patrimônio Público de Ubatuba e citou o Ato Normativo do Colégio de Procuradores de Justiça que garante sua prerrogativa, como presidente do inquérito civil, de expedir, mesmo em procedimento preparatório, recomendações (conforme a Lei Orgânica do MP) ao Poder Legislativo municipal. Nessa nota aos jornais, o promotor noticia que, "em data recente, o senhor Presidente da Câmara Municipal de Caraguatatuba, pelo mesmo fato, viu-se condenar". O "mesmo fato" foi o "uso descontrolado da frota", que "resvala para a prática de atos de improbidade administrativa".
As recomendações dizem respeito ao uso da frota de veículos do Legislativo municipal e formam uma cartilha de sete itens, chegando a um nível de detalhamento que impressiona. A título de exemplo, o item 2 pede a adoção de requisição para uso dos veículos da frota da Câmara: "Tal requisição, em pelo menos duas (2) vias, deverá conter, no mínimo, as seguintes informações: a) nome do requisitante; b) destino; c) objetivo do deslocamento (que deverá guardar pertinência com o interesse publico e, portanto, ausente tal interesse, o pedido deverá ser indeferido); d) nome do motorista ; e) horário de saída e do retorno; f) espaço para a comprovação de que o veículo se deslocou até o destino apontado, inclusive, com a assinatura do motorista, sob as penas da lei; g) quilometragem inicial e final h) gastos com a viagem (adiantamentos, pedágios etc) e i) deferimento da requisição a cargo do responsável pelo setor. Tal requisição deverá ser portada pelo motorista, inclusive, para fins de fiscalização pela Autoridade de Trânsito;".
Temos, então, (f) o motorista transformado em fiscal do vereador e ameaçado com as penas da lei. E (i, parte final) oficie-se à autoridade de trânsito para que fiscalize se o motorista porta a requisição, é isso? Talvez seja conveniente, então, fiscalizar também a autoridade de trânsito.
O promotor recomenda (5), em nome da transparência, a publicação do nome de apenas alguns dos vereadores, "os vereadores que mais usaram os veículos", bem como os "destinos preferencial (sic)". Bem, transparência é transparência, não cabe decidir, subjetivamente, "os que mais usaram". A Câmara tem um portal eletrônico, que facilita a divulgação de uma relação completa, de todos os vereadores que usaram veículos da Casa, e quais seus destinos usuais.
O vereador Rogério Frediani mostrou-se constrangido com a manifestação pública do promotor e indignado com a nova disciplina baixada pela Mesa, para os veículos da frota. O presidente da Câmara, vereador Ricardo Cortes (DEM), ouviu cabisbaixo a fala de Frediani e não opôs comentários nem defendeu a posição da Mesa.
Bem, vamos separar as coisas. O conteúdo da Nota do MP é correto, é uma cartilha de boas práticas de administração pública. A forma é que talvez não tenha sido, porque soou como um pito público, ainda que no exercício de suas funções, de um funcionário do Poder Executivo estadual a um Poder Legislativo municipal. O mesmo Ato Normativo citado pelo promotor diz que "A publicidade consistirá na divulgação oficial com o exclusivo fim de conhecimento público mediante publicação de extratos na imprensa oficial e, facultativamente, em meios cibernéticos ou eletrônicos, dela devendo constar: I – as portarias de instauração e os atos de conclusão" (que não constam na nota enviada aos jornais). Em parágrafo, a mesma norma autoriza a utilização de outros meios de publicidade, mas sem prejuízo da publicação na imprensa oficial. O Ato Normativo, portanto, fala na divulgação de extratos, resumos, e com o exclusivo fim de conhecimento público, o que não inclui causar constrangimentos desnecessários.
Mas o vereador Frediani incidiu numa contradição, ao defender o uso dos veículos da Câmara para o transporte de pacientes necessitados de assistência médica, o que é um desvio de finalidade. É que foi veemente ao dizer "está errado" quanto a outro desvio de finalidade, o uso de veículos da Educação para o mesmo fim. A medida há que ser a mesma. Não está nas atribuições do legislador municipal praticar assistencialismo, que pode beirar ao clientelismo. Na sempre precisa definição do dicionarista Houaiss, clientelismo "é prática eleitoreira de certos políticos que consiste em privilegiar uma clientela (’conjunto de indivíduos dependentes’) em troca de seus votos; troca de favores entre quem detém o poder e quem vota".
A atribuição do legislador municipal é legislar, bem como fiscalizar o Executivo, a quem efetivamente cabe prover, institucionalmente e universalmente, os meios de transporte aos pacientes necessitados. O vereador precisará trabalhar nas causas, e não nas consequências, e, para isso, não precisa perder os sentimentos, mas sim aplicá-los no exercício de suas mais altas funções, aquelas para as quais foi eleito.
É comumente aceito que Cidadania e clientelismo são termos que compõem uma antítese. Com trabalho institucional, Legislativo exercendo suas altas funções, MP exercendo suas altas funções, a Cidadania tenderá a suplantar o clientelismo. Baixarias, naniquices, não podem entrar nessa equação.
17/04/2010
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