quarta-feira, 23 de junho de 2010

Recorde pessoal: comi uma cavala

As mulheres podem ler, claro, mas talvez não tenham a dimensão da vivência pessoal, porque se trata de um linguajar que remete à gabolice típica de adolescente caipira, com a palma da mão abundante de pelos, mas sustentando ser o tal que, em vez de descascar a banana, finalmente afogou o ganso.
Poizé. Meu recorde pessoal. Comi uma cavala. Uma tremenda cavala, daquelas que justificariam o dito (masculino) popular "uma verdadeira potranca de criação". Tenra, curvas voluptuosas, cheirosa, macia. Suavidade em postas grandes e sem espinhos, e só um pequeno, malicioso, toque apimentado.
Marlene não estava, o que me causou uma ponta de sentimento de culpa. Como apreciar plenamente sabendo que, de nós dois, é ela quem mais curte essas carnes branquinhas? Foi, então, um almoço a três, pai, filha e amigo. Julinho me convidou para sua casa, aceitei, almoçamos na companhia de sua filha. Ele serviu, de sua própria autoria, cavala com banana verde, com retalhos longos de casca e tudo, um dos famosos pratos azuis. Até o pirão, delicioso, tinha a banana verde. Ao lado, um pote de uma pimenta que se pode chamar de "ao ponto": nem pouco, nem muito ardida. Uma salada abundante e, na própria panela, o prato que é minha perdição: arroz bem soltinho, de grandes grãos brancos bem cozidos. Esclareço: minha dieta tem restrição de carboidratos e o arroz é a Vossa Excelência dos carboidratos, só perdendo para a batata. E aí temos o ponto positivo: a banana verde lembra a consistência de uma batata, mas de sabor próprio suavemente acentuado. Só que com bem menos carboidratos, apesar de sua frutose. Numa palavra, tudo perfeito e delicioso, ao modo caiçara, com discreto tempero e um quase nada de sal - este também muito restrito em minha dieta.
Foi um recorde pessoal porque, talvez devido a traumas adquiridos na infância, tenho um medo infantil de peixe. A carne é sim apetitosa para o meu paladar, mas é só pensar em espinhos que a garganta trava.
É interessante como o mundo da realidade virtual permite intuir afinidades. É como considero a internet e seus múltiplos recursos, um mundo real do qual tomamos consciência pelo meio virtual. O que nela acontece é real, permitindo, por vezes, a evolução do contato virtual para o contato pessoal, este sim concreto, o aperto de mão, o olho no olho. E às vezes até mais, como podemos atestar eu próprio e a Marlene, que depois de um ano já estávamos juntos, apesar de separados por 300 quilômetros. Isso já faz década.
Os deliciosos textos do Julinho, com seu humor próprio, permitiram uma empatia que se confirmou quando pude conhecê-lo pessoalmente. O povo ama seus artistas, desde a tietagem desenfreada produto da televisão, até aquele discreto e envolvente bem-estar quando se está na presença do artista, quando se ouve a cantoria, o som do violão e do ratambufe, se vê o próprio violão decorado e colorido, telas com estilo próprio e objetos com volume como, por exemplo, o Saci, com o qual topei na casa do Julinho. O artista tende a ser bom em várias expressões, não exclusivamente em uma. É um dom, que certamente não tenho, mas que aprecio muito. Estou mais para Juliano e Ligia do que para Tatiana e Elka, meus filhos. Estas são artistas e exercem sua sensibilidade em múltiplas expressões, a começar pelas artes cênicas.
A visita ao quintal da casa evocou todo um mundo. Uma canoa caiçara típica, escavada do tronco de uma árvore que caiu, porque suas raízes não foram suficientes para sustentá-la em uma pesada tempestade. Uma horta, com vários canteiros enfileirados, que atende as necessidades alimentares vegetais da família, mas também fornece folhas e raízes para as galinhas do cercado, um conjunto que compõe o familiar clima rural dos sonhos de (quase) todos nós. Árvores frutíferas, um destaque para a planta brasileira por excelência, a jabuticabeira, de porte não muito avantajado e que dá frutas miúdas, dulcíssimas.
E, oh!, um belíssimo cão pastor alemão, um adulto jovem, calmo quando na presença de seu dono, entretido com um belo osso. Lembrou-me a Jade, sobre a qual ainda não estou preparado para falar.
Já de saída, vi, na calçada, ao rés do chão, um objeto que povoa meu banco de projetos. Muito desconfio de que as coordenadas inscritas no relógio de sol foram calculadas pelo próprio Julinho, que também é dado a essas artes geográficas de visadas e ângulos e senos e cossenos, e que gosta de saber exatamente onde está pisando. Hoje qualquer um pode ter um GPS, eu próprio tenho um desses baratinhos, de mão, mas o Julinho usa ferramentas de topógrafo.
E, tendo já vencido um medo, continuarei minha caminhada em me acaiçarar: da próxima vez o peixe será aqui em casa, no pé do morro do Funhanhado. Tenho outro medo, o de água, não sei nadar. Então, por enquanto, o peixe virá da peixaria do Jorginho, aqui perto. Bananas verdes as há em cachos na beira do corguinho que flui mansamente no fundo do quintal. E o fogão ficará por conta da Marlene e do Julinho.

- Texto originalmente publicado na revista eletrônica O Guaruça 
18/04/2010

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